Tikun Olam, Redenção e a Gnose Globalista: Uma Análise à Luz da Filosofia Aristotélica
Introdução
Nas últimas décadas, o conceito de Tikun Olam
tornou-se recorrente no vocabulário religioso, político e até mesmo em
pronunciamentos de autoridades eclesiásticas. Proveniente da tradição judaica e
especialmente desenvolvido na literatura cabalística, apresenta-se como uma
proposta de “restauração do mundo” mediante iniciativas humanas.
Superficialmente, transmite ares de compromisso ético e social; contudo, quando
analisado em profundidade, evidencia-se uma tensão teológica insuperável entre
tal perspectiva e o núcleo da fé cristã: a Redenção consumada por Cristo no
mistério pascal.
É crucial distinguir entre a legítima caridade cristã —
expressão concreta da graça na vida social — e projetos de salvação imanentista
que absolutizam a ação humana. O Tikun Olam é precisamente isso: uma
tentativa de resolver o drama existencial e cósmico do mal por meio de ações
humanas desvinculadas da economia da graça. Nessa concepção, a centralidade da
cruz é relativizada e a história da salvação é reduzida a um programa de
engenharia social.
A sua crescente difusão em organismos internacionais, como a
ONU, e em setores da Igreja influenciados pelo progressismo, revela não apenas
uma estratégia retórica, mas um verdadeiro redirecionamento da missão da
Igreja: de sacramento universal de salvação para mera agência de transformação
sociopolítica. Tal deslocamento ecoa, sob roupagens contemporâneas, a velha
tentação gnóstica que promete a redenção sem o Redentor.
Para avaliar adequadamente a problemática, é fecundo
recorrer à metodologia aristotélica das quatro causas — formal, material,
eficiente e final. Esses princípios permitem não apenas compreender a estrutura
interna do Tikun Olam, mas também contrastá-la com a economia da
Redenção cristã, iluminando divergências de fundo que não podem ser
harmonizadas.
Este ensaio pretende, portanto, oferecer uma análise
filosófico-teológica do Tikun Olam, examinando sua assimilação por
organismos globais e por setores eclesiais, e demonstrando em que medida se
configura como alternativa gnóstica ao Evangelho. O objetivo não é polemizar,
mas propor discernimento crítico diante de conceitos sedutores que mascaram
projetos ideológicos potencialmente corrosivos da fé.
Causa Formal: a estrutura da doutrina
Do ponto de vista formal, o Tikun Olam se apresenta
como uma ética de reparação cósmica, cujo arcabouço é delineado por categorias
de reorganização social e de equilíbrio comunitário. A sua formalidade se
enraíza em uma visão antropocêntrica, na qual a coletividade humana é chamada a
ser sujeito e objeto da própria salvação. Esse formato de pensamento não é
meramente um exercício moral, mas uma verdadeira moldura conceitual que desloca
a centralidade da Revelação para a autonomia da práxis humana.
Contrastivamente, a forma sacramental da Redenção cristã
possui uma natureza distinta e superior: ela se estrutura na Cruz de Cristo e
nos sacramentos que a prolongam na história, constituindo sinais eficazes da
graça. Aqui, a formalidade não se limita a um modelo ético ou a um arranjo
comunitário, mas repousa em uma economia sacramental ordenada pela iniciativa
divina. A estrutura é, portanto, teândrica: Deus age no homem e por meio do
homem, mas nunca de modo a ser substituído por ele.
Essa diferença formal revela dois paradigmas inconciliáveis.
No Tikun Olam, a forma exprime a pretensão de que o cosmos pode ser
recomposto mediante práticas humanas. Na Redenção, a forma exprime que a
salvação é dom gratuito que assume formas visíveis para comunicar o invisível.
Um é imanente e ascendente; o outro é transcendente e descendente.
Além disso, a formalidade do Tikun Olam tende a ser
aberta, plástica e adaptável a diferentes projetos políticos ou culturais, o
que facilita sua instrumentalização por organismos internacionais ou ideologias
contemporâneas. Já a forma da Redenção, ao contrário, é estável e definida pela
própria Revelação, expressa dogmaticamente na Tradição e no magistério da
Igreja. Não admite ser remodelada ao sabor das circunstâncias históricas.
Por fim, compreender a causa formal de ambas as propostas é
decisivo: a diferença não é periférica, mas estrutural. Enquanto o Tikun
Olam formaliza uma visão horizontal do destino humano, a Redenção
sacramental formaliza a verticalidade da graça que desce de Deus ao homem. Aqui
se demarca o ponto crítico: ou se adota uma forma antropocêntrica que coloca o
homem no centro, ou se abraça a forma cristocêntrica em que a Cruz é o eixo
estruturante da história da salvação.
Causa Material: os meios empregados
A causa material do Tikun Olam repousa na ação humana
coletiva: práticas sociais, iniciativas políticas, projetos de justiça e
mobilizações comunitárias. Essas realidades, embora possuam algum mérito
relativo, são elevadas à condição de matéria constitutiva de uma suposta
salvação, o que as absolutiza. O problema não está no valor intrínseco de tais
ações, mas no fato de serem convertidas em matéria última de uma redenção
concebida apenas em termos horizontais.
No horizonte da fé católica, a matéria da Redenção é
radicalmente outra: trata-se do sacrifício único e perfeito de Cristo, tornado
presente sacramentalmente na liturgia e nos sacramentos. Essa matéria não
depende da eficácia ou da boa vontade humanas, mas da oblação de Cristo,
oferecida de uma vez por todas no Calvário e continuamente atualizada na
Eucaristia. Aqui, a matéria não é a ação do homem em direção a Deus, mas a ação
de Deus que desce ao homem.
Essa diferença se torna evidente quando comparamos o alcance
de ambas as matérias. No Tikun Olam, a transformação é contingente e
limitada às estruturas sociais. Na Redenção, a matéria é universal e
transcendente, pois opera a reconciliação do homem com Deus e a restauração de
toda a criação. Enquanto uma matéria depende da mutabilidade da história, a
outra se fundamenta no acontecimento histórico absoluto da cruz.
Além disso, o Tikun Olam tende a instrumentalizar as
ações sociais como sacramentos seculares, transformando obras de justiça em
sinais de uma pseudo-salvação. No cristianismo, porém, a matéria sacramental
nunca é mero símbolo humano, mas realidade eficaz da graça. Essa distinção
impede que a Igreja confunda as obras de misericórdia com o próprio ato
redentor de Cristo.
Portanto, compreender a causa material do Tikun Olam
e da Redenção mostra que não estamos diante de simples variantes de um mesmo
esforço salvífico. São paradigmas distintos: de um lado, o imanentismo que
absolutiza a ação humana; de outro, a fé que reconhece no sacrifício de Cristo
a única matéria suficiente para a salvação. Essa diferença é decisiva para
discernir entre projetos humanistas e a verdadeira economia da graça.
Causa Eficiente: o agente da transformação
Na lógica do Tikun Olam, o agente eficiente é a
humanidade organizada, frequentemente corporificada em instituições
internacionais ou, em versão religiosa, em estruturas eclesiais marcadas por
ideologias seculares. Essa concepção atribui ao homem coletivo a prerrogativa
de operar a restauração cósmica, deslocando a iniciativa salvífica de Deus para
organismos meramente humanos. Em última análise, trata-se de uma inversão
teológica que confere ao agente humano uma função que nunca lhe pertenceu.
No horizonte da fé católica, o único agente eficiente da
salvação é Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, cuja mediação é
absolutamente insubstituível. A eficácia da Redenção repousa inteiramente na
sua oblação no Calvário, perpetuada sacramentalmente na história. Nenhum
esforço humano, por mais nobre ou organizado que seja, pode substituir essa
mediação única, pois a própria estrutura da salvação é teândrica e não
antropocêntrica.
Essa diferença torna-se ainda mais nítida quando se observa
que o Tikun Olam tende a confiar em estruturas institucionais ou
políticas que, por sua própria natureza, são contingentes e sujeitas a
interesses ideológicos. A Redenção, ao contrário, não depende de instituições
humanas, mas da ação soberana de Cristo, que age por meio da Igreja como
sacramento universal de salvação. A causalidade eficiente aqui não é delegável
nem transferível.
Além disso, a atribuição da causalidade eficiente ao homem
coletivo é, em certo sentido, a repetição da soberba original: a pretensão de
ser como Deus. É a mesma lógica luciferina que substitui a confiança na graça
pela autossuficiência humana. Tal deslocamento não apenas distorce a fé, mas
esvazia o sentido da Cruz, transformando-a em mero símbolo de inspiração ética.
Compreender a causa eficiente é, portanto, fundamental para
discernir o erro subjacente ao Tikun Olam. Ou Cristo é o único agente
eficiente da salvação, e a humanidade colabora apenas de forma secundária e
instrumental, ou transfere-se ao homem um papel divino, incorrendo no mesmo
pecado das origens. Aqui se encontra o divisor de águas entre uma visão gnóstica
da história e a soteriologia católica enraizada no mistério pascal.
Causa Final: a teleologia subjacente
A teleologia do Tikun Olam manifesta-se de modo
claro: seu horizonte último é instaurar um mundo harmonioso por meio de ações
humanas coordenadas. A finalidade projetada é inteiramente imanente,
limitando-se à esfera da história e à realização de uma justiça terrena. Ainda
que sob aparência moral e até religiosa, o alvo supremo não transcende a ordem
natural, mas pretende encerrar-se nela. Aqui, a salvação é recodificada em
termos de prosperidade política, equilíbrio social e bem-estar coletivo.
Já a Redenção cristã se orienta por uma finalidade
radicalmente distinta: a união eterna do ser humano com Deus na visão
beatífica. A finalidade escatológica não é uma melhoria incremental da ordem
social, mas a consumação em Cristo ressuscitado. Nesse horizonte, toda ação
terrena, ainda que justa e boa, tem caráter instrumental e transitório, pois
visa à plenitude que só pode ser alcançada na comunhão eterna com o Criador. A
teleologia cristã é vertical e transcendente, não horizontal e imanente.
A confusão entre essas duas ordens de finalidade gera uma
grave distorção soteriológica. Quando a ordem social é absolutizada como o fim
último da história, a esperança cristã é reduzida a um programa de engenharia
social. A missão da Igreja se vê deslocada de sua identidade como sacramento
universal de salvação para um papel de mediadora de consensos políticos. Essa
substituição não apenas esvazia o núcleo do Evangelho, mas reconfigura a Igreja
em função de critérios que lhe são alheios.
Outro aspecto preocupante é a gnose política subjacente à
teleologia do Tikun Olam. Ao prometer uma restauração plena por meio de
técnicas, tratados e organismos internacionais, transfere ao homem coletivo a
tarefa de instaurar uma ordem perfeita. A dependência da graça é substituída
pela confiança em sistemas humanos. Esse é o eco do projeto de Babel: a
tentativa de construir um céu na terra, sem referência a Deus, fundamentando a
esperança em instrumentos falíveis e transitórios.
Portanto, a análise da causa final mostra o ponto decisivo
da divergência: enquanto o Tikun Olam promete um paraíso terrestre
imanente, a Redenção cristã oferece a vida eterna. O cristão é chamado a agir
no mundo e buscar a justiça, mas sempre subordinando esses esforços à meta
última da visão beatífica. Sem essa referência transcendente, toda teleologia
imanente não apenas fracassa, mas se converte em idolatria do próprio homem e
de sua obra.
A gnose travestida de humanismo
A leitura aristotélica torna patente que o Tikun Olam
é expressão contemporânea de uma gnose que substitui o sobrenatural pelo
natural, a graça pela técnica e Cristo pelo homem coletivo. Essa lógica está
presente não apenas nos discursos de organismos internacionais, mas também nas
agendas de setores eclesiais que reduzem a missão da Igreja a projetos
humanitários. O resultado é uma paródia da fé cristã: fraternidade sem Cristo,
bem comum sem graça e redenção sem cruz.
Essa gnose assume a roupagem de um humanismo sedutor. Ao
exaltar a dignidade humana e a busca por justiça social, ela conquista adesões
sinceras, mas omite a dimensão mais profunda da condição humana: a necessidade
radical da graça. Sem o reconhecimento do pecado original e da salvação em
Cristo, o humanismo torna-se uma caricatura, incapaz de oferecer respostas ao
drama existencial do homem. Reduz-se a uma moralidade horizontal, elegante,
porém vazia de transcendência.
Além disso, essa lógica gnóstica, ao recusar a mediação de
Cristo, fabrica um “messias coletivo”, seja ele a ONU, organismos
internacionais ou movimentos sociais que prometem instaurar o reino da paz.
Contudo, tais messianismos se revelam incapazes de responder à sede infinita do
coração humano. Quando o sobrenatural é descartado, o resultado inevitável é a
idolatria do político, a absolutização do temporal e o esquecimento do eterno.
O humanismo gnóstico também corrói internamente a vida da
Igreja. Quando a missão eclesial é confundida com mera ação social, os
sacramentos são relativizados e a liturgia perde seu caráter de culto a Deus
para ser reinterpretada como assembleia horizontal. Essa redução compromete a
identidade católica, transformando a Igreja em uma ONG espiritualizada,
prisioneira das agendas de cada época. É a traição mais sutil: vestir-se de
caridade sem levar os homens ao Cristo que salva.
Por fim, a leitura aristotélica nos ajuda a discernir que,
sob a máscara do humanismo, esconde-se uma gnose que inverte todas as causas da
verdadeira Redenção. A forma torna-se antropocêntrica, a matéria se reduz à
ação social, a eficiência se transfere ao homem coletivo e o fim é um paraíso
terrestre. Contra isso, a Igreja deve proclamar com vigor que só em Cristo há
Redenção e que todo humanismo autêntico só se realiza quando enraizado na
graça. Sem Ele, o humanismo não passa de uma ilusão piedosa, mas essencialmente
vazia.
Considerações Finais
A controvérsia em torno do Tikun Olam ultrapassa
disputas semânticas ou questões de interpretação. Trata-se de uma questão
teológica de primeira ordem: a quem pertence a prerrogativa da salvação? À
humanidade organizada ou a Deus encarnado em Cristo? O cristianismo responde de
modo inequívoco: só Cristo salva, e qualquer tentativa de substituir essa
verdade é uma adulteração do Evangelho.
As quatro causas aristotélicas iluminam a oposição radical
entre o Tikun Olam e a Redenção: diferem na forma, na matéria, no agente
e no fim. Enquanto um permanece circunscrito ao horizonte imanente da ação
humana, o outro abre a criatura à comunhão eterna com o Criador. Não se trata,
portanto, de aproximações superficiais, mas de paradigmas mutuamente
excludentes.
Não surpreende que organismos globais e setores eclesiais
simpatizem com o Tikun Olam. Ele se coaduna perfeitamente com projetos
de fraternidade universal desprovidos de referência a Cristo, acomodando-se às
ideologias contemporâneas. Para a fé católica, contudo, tal adesão constitui
sinal de infidelidade: não se pode substituir a mediação da cruz por programas
sociais nem a graça por tratados políticos.
A Tradição e o Magistério da Igreja sempre ensinaram que a
transformação do mundo é consequência da conversão das almas, fruto da ação da
Graça. Quando essa ordem é invertida, a utopia se converte em tirania — e a
história moderna já forneceu provas eloquentes desse mecanismo. Por isso,
discernir os fundamentos das propostas de transformação social é tarefa
teológica de primeira grandeza.
Em síntese, diante de conceitos como Tikun Olam, é
imperativo que o cristão mantenha vigilância intelectual e fidelidade
teológica. A linguagem da caridade pode disfarçar uma gnose que, ao final,
substitui Cristo por projetos humanos. Somente a Redenção, enraizada no
mistério da cruz, constitui verdadeira esperança para a humanidade. Como afirma
o Livro dos Atos: “Não há debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual
devamos ser salvos, senão o nome de Jesus.”
Por Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância
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