Entre a Aliança e a Apostasia: Uma Hermenêutica Teológica da Mutação Pós-Conciliar na Relação Igreja-Judaísmo
Introdução
No cerne desta investigação teológica, propomos uma
abordagem articulada pela estrutura causal aristotélico-tomista — causas
material, formal, eficiente e final — a fim de perscrutar a natureza, os
contornos e as implicações da nova práxis eclesial frente ao judaísmo. A
reflexão será informada por uma hermenêutica de continuidade, conforme proposta
por Bento XVI, e por uma crítica imanente que recorre à tradição patrística,
aos Concílios ecumênicos e ao magistério pré-conciliar, com o intuito de
verificar a consonância ou dissonância das posições recentes com a fé perene da
Igreja. Trata-se de um esforço de discernimento teológico, não apenas
apologético, mas sapiencial, que visa recuperar a primazia da verdade salvífica
sobre os consensos diplomáticos de cunho inter-religioso.
Causa Material: O Judaísmo Histórico à Luz da Revelação Cristológica
A causa material da presente questão reside no próprio
judaísmo enquanto realidade religiosa que, embora derivada da Revelação divina,
encontra-se em estado de interrupção salvífica após o advento do Cristo. A
Antiga Aliança, estabelecida com os patriarcas e formalizada na Lei mosaica, é
compreendida, à luz do Novo Testamento, como pedagoga em ordem a Cristo (cf. Gl
3,24). Nesse sentido, o judaísmo pós-cristológico, ao recusar o Messias
prometido, persevera numa forma religiosa objetivamente incompleta, carente da
plenitude sacramental e escatológica inaugurada pela Encarnação.
A patrística latina e grega é unívoca em interpretar a
subsistência histórica da Sinagoga como sinal da pedagogia divina, que permite
a sua permanência como testemunho da promessa rejeitada. Santo Agostinho, ao
falar da Sinagoga como “testemunha involuntária” da veracidade das Escrituras,
ilustra essa dimensão profética paradoxal da incredulidade judaica. A
sobrevivência do povo judeu, longe de indicar uma via paralela de salvação,
exprime a fidelidade divina às promessas feitas, mas exige, como resposta, a
conversão ao Evangelho.
A partir dessa compreensão, qualquer tentativa de dissociar
o judaísmo da sua dimensão teológica — reduzindo-o a mera etnicidade ou cultura
— constitui grave mutilação do dado revelado. A caducidade da Lei Antiga,
proclamada nos Concílios de Florença e de Trento, implica que os ritos mosaicos
não mais comunicam graça, sendo, portanto, ineficazes para a salvação (cf.
Denzinger 1348, 1575).
A fidelidade ao Evangelho exige o reconhecimento de que a
Nova Aliança, selada no sangue do Cordeiro, não apenas supera, mas substitui em
eficácia soteriológica a Antiga. Nenhuma retórica dialógica pode relativizar
esse princípio sem ferir a integridade do depósito da fé. A evangelização dos
judeus, longe de ser uma forma de proselitismo ilegítimo, constitui um ato de
caridade teologal, pois visa à sua inclusão na plenitude dos meios salvíficos.
Portanto, a substância da controvérsia não é apenas
histórica ou pastoral, mas ontológica: trata-se da identidade do judaísmo à luz
da Revelação cristã e da missão da Igreja como medianeira universal da
salvação.
Causa Formal: A Mutação Hermenêutica e o Discurso Pós-Conciliar
A causa formal refere-se à configuração conceitual e
linguística que expressa uma realidade teológica. A partir do Vaticano II,
nota-se uma significativa alteração da forma com que a Igreja se refere ao
judaísmo: de uma estrutura doutrinal centrada na superação da Antiga Aliança em
Cristo, passa-se a uma linguagem de “aliança nunca revogada”, “diálogo
fraterno” e “coexistência salvífica”.
O documento da Comissão Vaticana de 2015, ao afirmar que
“não existe missão dirigida especificamente aos judeus”, rompe com a tradição
missionária universal da Igreja. Tal afirmação implica uma negação implícita da
necessidade da fé em Cristo para a salvação, contrariando expressamente as
Sagradas Escrituras (cf. Jo 14,6; At 4,12) e a doutrina tradicional expressa no
Dominus Iesus.
Além disso, a modificação das orações litúrgicas pela
conversão dos judeus representa uma transposição da esperança escatológica para
um vago desejo de coexistência, esvaziando o conteúdo soteriológico da
liturgia. A lex orandi, assim transformada, afeta inevitavelmente a lex
credendi, gerando confusão nos fiéis.
A adoção de categorias modernas como “alteridade”,
“pluralismo” e “respeito mútuo” substitui os conceitos clássicos de “verdade”,
“graça” e “conversão”. Essa mutação formal não é neutra: ela veicula uma
epistemologia relativista que compromete o anúncio do Evangelho.
Portanto, a forma adotada nos discursos pós-conciliares
sobre o judaísmo implica não apenas uma nova linguagem, mas uma nova teologia —
não mais centrada na mediação exclusiva de Cristo, mas numa convivência
religiosa horizontal, que relativiza a dimensão escatológica da missão e da
verdade.
Causa Eficiente: O Concílio Vaticano II e a Influência de Agentes Extraeclesiais
A atuação de intelectuais judeus como Jules Isaac e a
influência exercida sobre o Cardeal Bea mostram que, em muitos aspectos, a
redação de Nostra Ætate não partiu exclusivamente da reflexão eclesial
interna, mas foi condicionada por fatores externos, marcadamente políticos e
emocionais.
Essa ingerência externa compromete a autonomia do magistério
teológico, sujeitando-o a critérios de oportunidade diplomática. A teologia
passa, então, a servir a uma estratégia de reconciliação político-religiosa, em
detrimento da clareza doutrinal.
A nova práxis, simbolizada pelas visitas papais a sinagogas
e pelas declarações laudatórias ao judaísmo pós-cristão, promove uma forma de
judaização simbólica da linguagem eclesial. Essa mudança litúrgica e gestual,
ainda que não formalmente herética, induz ao erro os fiéis menos instruídos.
A causa eficiente, portanto, revela um deslocamento da
motivação eclesiológica para considerações extrínsecas, cuja consequência é a
perda da clareza profética da Igreja e a diluição da sua identidade
missionária.
Causa Final: Missio ad Gentes ou Concordismo Religioso?
A finalidade da Igreja é a salvação das almas pela pregação
do Evangelho e pela administração dos sacramentos. Qualquer prática que
comprometa esse fim último incorre num desvio teleológico. A substituição da
missão ad gentes por um paradigma de “diálogo inter-religioso” configura uma
redefinição da finalidade eclesial.
O deslocamento do tê-los da evangelização para a promoção da
paz mundial, do combate ao antissemitismo ou da cooperação inter-religiosa
revela um humanismo imanentista, que seculariza a missão da Igreja.
O ecumenismo e o diálogo inter-religioso são válidos na
medida em que conduzem à unidade na verdade. Fora disso, tornam-se instrumentos
de acomodação eclesial e de esterilização da missão apostólica.
A negação prática do chamado à conversão dos judeus não
apenas contradiz a Escritura, mas desfigura o mandato missionário conferido por
Cristo à Igreja. Amar os judeus é anunciar-lhes a plenitude da Revelação em
Jesus Cristo.
Portanto, a finalidade de toda ação eclesial deve permanecer
invariavelmente ordenada à glória de Deus e à salvação das almas. A perda desse
horizonte escatológico conduz inevitavelmente à mundanização da Igreja.
Considerações Finais
A análise realizada à luz das quatro causas
aristotélico-tomistas evidencia que a mutação da relação Igreja-judaísmo no
pós-Vaticano II não se limita a ajustes pastorais, mas atinge os fundamentos da
teologia dogmática. A redefinição do judaísmo como parceiro salvífico e não
mais como destinatário da missão configura uma ruptura na continuidade da
Tradição.
A Igreja deve retomar com urgência uma hermenêutica da
fidelidade, que valorize a Tradição viva sem ceder às pressões externas e aos
modismos teológicos. O zelo pastoral jamais pode ser dissociado da integridade
da fé.
Evangelizar os judeus não é gesto de intolerância, mas de
amor cristocêntrico. A Nova Aliança, por sua própria natureza, exige a
superação da Antiga, e não sua coexistência paralela. O testemunho da Igreja
primitiva e dos santos atesta essa verdade com sangue e lágrimas.
Rezemos, pois, pela conversão de Israel, como exortava São
Paulo, e sustentemos, com caridade e coragem, a missão confiada à Igreja de
anunciar Cristo, único Salvador de todos os homens, judeus e gentios.