Em que consiste a vocação para o Carmelo?
Na igreja há muitas vocações, muitos carismas, muitos
serviços. Ao longo dos séculos, diante das necessidades do povo de Deus, sempre
apareceram pessoas que procuravam ler a situação do povo à luz da palavra de
Deus e se sentiam impelidas para responder ao chamado que vinha da realidade.
Assim foram surgindo as várias congregações religiosas, as ordens, os
institutos, os movimentos leigos, as organizações de bairro e tantos outros
movimentos e formas de ajuda para melhorar a vida das pessoas e transformar a
convivência humana mais de acordo com a vontade de Deus. Assim surgiu a ordem
do Carmo, a família carmelitana. Foi na Idade Média, mais de oitocentos anos
atrás.
A grande necessidade do povo na Idade Média
No século X e XI, apareceu uma grande necessidade no povo da
Europa. O sistema social, econômico e político do feudalismo começou a
desintegrar-se. Muita gente que vivia nos feudos do interior, da roça, saía
para ir morar nas cidades que estavam crescendo com muita força e poder. Assim,
nas periferias das cidades surgiam as massas de pobres, chamados “menores”.
Muita gente se aproveitava desta situação confusa para difundir idéias
estranhas no meio do povo. Na Igreja, o clero não estava preparado para esta mudança
repentina e os grandes mosteiros dos monges, que viviam longe do povo, por ora
não tinham resposta adequada.
Diante deste grande clamor, diante desta vocação de Deus
vinda da realidade, muitas pessoas começaram a procurar uma resposta. Demorou
muito tempo para encontrar o rumo. Uma destas pessoas foi Francisco de Assis.
Ele encontrou uma resposta bonita e muito concreta. Para ajudar o povo a
reencontrar Deus na vida, ele criou pequenas comunidades itinerantes de leigos
que viviam entregues à oração e andavam pelos povoados para anunciar e irradiar
a boa nova de Jesus. Era chamado o movimento mendicante.
Quando São Francisco morreu, nem vinte anos depois, já havia
mais de 5000 frades franciscanos e muitas religiosas franciscanas junto com
Santa Clara. Sinal de que Francisco e Clara souberam ser um apelo forte para a
juventude da época.
Os franciscanos (o nome vem de Francisco) se chamavam
“frades menores”, porque procuravam viver com os “menores” e como os “menores”,
os pobres. Ao lado dos “frades menores” surgiram vários outros grupos
mendicantes: Dominicanos, Mercedários e outros. Um deles somos nós: a Ordem dos
Irmãos da bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, a família carmelitana.
A família carmelitana: sua vocação, seu carisma
Os mendicantes nasceram para ajudar os “menores”, o povo
pobre que vinha dos feudos do interior, da roça, e enchia as periferias das
cidades. Cada grupo mendicante procurava responder a uma necessidade bem
concreta do povo. Os franciscanos identificavam-se, sobretudo, com a pobreza e
viviam pobres com os pobres, testemunhando e anunciando a boa nova de Jesus. Os
dominicanos procuravam atender às necessidades do conhecimento deficiente que o
povo tinha das coisas da fé, pois havia muita gente que semeava confusão entre
os pobres. Os mercedários se uniam para ajudar na libertação dos muitos
prisioneiros e escravos.
E os carmelitas? Os frades carmelitas procuravam atender à
grande necessidade que o povo sentia de saber como rezar, como viver com Deus
na oração; como viver na presença de Deus, como irradiar esta presença de Deus
no meio do povo, no meio dos “menores”.
Os primeiros carmelitas, na sua maioria, eram leigos. Eles
tinham abandonado a Europa, sua terra natal, para viver, como peregrinos, na
terra de Jesus. Alguns foram ex-combatentes das cruzadas. Eles se estabeleceram
no monte Carmelo, onde era muito viva a memória do profeta Elias e do seu
discípulo o profeta Eliseu. Lá no monte Carmelo, começaram a organizar-se em
comunidade ao redor da fonte do profeta Elias e ao redor de uma capelinha
dedicada a Santa Maria do Monte Carmelo. Eles foram morar lá, como eles mesmos
diziam, para poder iniciar uma vida nova “em obséquio de Jesus Cristo”. Isto
foi em torno do ano 1200. Para distingui-los dos outros grupos, o povo os
chamava: “irmãos da bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo”.
Eles viviam de maneira muito simples e pobre, cada um numa
gruta na montanha, que eles chamavam de cela. De manhã cedo, reuniam na capela
para celebrar a eucaristia. Durante o dia, rezavam os salmos, meditavam a vida
de Jesus e trabalhavam para poder sobreviver. Em determinados dias desciam do
monte para os povoados a fim de anunciar a boa nova de Jesus ao povo do lugar.
Tinham seus jegues ou jumentos nos quais viajavam para visitar os pobres nas
suas comunidades.
Depois de uns anos, eles quiseram ter a aprovação da Igreja
para sua maneira de viver o evangelho lá no Monte Carmelo. Resolveram conversar
com o bispo de Jerusalém, o patriarca Alberto. Mas antes de falar com ele,
fizeram uma reunião e elaboraram um rascunho, no qual expunham para Alberto o
seu jeito próprio de “viver em obséquio de Jesus Cristo”. O patriarca Alberto
acolheu o pedido e transformou o rascunho num programa de vida que é a regra do
Carmo. Isso por volta de 1207.
Uns 30 anos depois, eles decidiram que um grupo deles devia
voltar para Europa, pois, diante das ameaças dos muçulmanos, a situação no
monte Carmelo estava cada vez mais insegura, com menos perspectivas para o
futuro. Eles queriam que a missão continuasse e se espalhasse em outros lugares
e países. Assim, alguns deles voltaram para a Europa: uns foram para a ilha de
Chipre, outros para Sicília e para o sul da França. Isto foi em 1238.
Nas cidades da Europa, a situação do povo era bem diferente
do que no monte Carmelo e seus povoados. Por isso, para que pudessem servir
melhor aos “menores” da Europa, pediram ao papa Inocêncio IV para adaptar a
regra às novas circunstâncias. O papa atendeu ao pedido. Ele pediu a dois
frades dominicanos, Hugo e Guilherme, para atualizar e adaptar a regra à nova
situação da Europa. Em seguida, o papa aprovou a regra. Isto foi no dia 1 de
outubro de 1247.
Um pouco mais de 50 anos depois, em 1300, já havia mais de
150 comunidades carmelitas ou pequenos Carmelos em quase todos os países da
Europa. Sinal de que, como Francisco e Clara, o testemunho de vida dos
primeiros carmelitas era um apelo forte para a juventude da época.
O monte Carmelo: um ideal de vida
O monte Carmelo marcou de tal maneira a vida daqueles
primeiros frades, que ele deixou de ser uma simples referência geográfica para
tornar-se um ideal de vida. Por isso, em vez de Albertinos (o nome viria de
Alberto), eles quiseram ser chamados de carmelitas, moradores do Carmelo. Cada
comunidade de carmelitas, seja de leigos ou leigas, seja de frades, freiras ou
monjas, deve ser um pequeno Carmelo, isto é, um lugar onde as pessoas
reencontram o mesmo ideal de vida, a mesma boa nova de Deus, o mesmo ambiente
acolhedor, a mesma hospitalidade e a mesma fraternidade, que os tinha marcado
para sempre desde aquele primeiro início lá no monte Carmelo. E assim deve ser
até hoje.
Até hoje, procuramos recriar em nós o mesmo ideal de vida.
Como os nossos santos e santas, iniciamos a mesma “subida do monte Carmelo”:
Alberto, Ângelo, Maria Madalena de Pazzi, João Soreth, Nuno, João da Cruz,
Tereza de Ávila, Teresinha de Lisieux, Tito Brandsma, Edith Stein, Teresa de
los Andes, Isidoro Bakanja, Gabriel Couto, Ângelo Paoli. Tantos e tantas!
Homens e mulheres, sacerdotes e religiosas, monjas e leigos, casados e
solteiros, pais e mães de família, jovens e velhos, rapazes e moças. Todos eles
testemunham com a sua vida: ser carmelita é tudo que eu quero na vida! Venha
beber desta fonte!
Que fonte é esta? É a intuição mística que brota dentro de
cada um de nós e sobe do fundo da nossa consciência dizendo: “Deus existe, ele
está conosco, ele nos ouve; dele dependemos, nele vivemos, nos movemos e
existimos. Somos da raça do próprio Deus” (cf. At 17,28). E o coração humano
responde murmurando: “sim, tu nos fizeste para ti, e o nosso coração estará
irrequieto até que não descanse em ti!”
Hoje, mais do que nunca, em cada nova geração, este murmúrio da alma
levanta a cabeça em busca de uma resposta para as perguntas que sempre
renascem: por que existimos? Quem nos fez? Quem é Deus? Qual o sentido da nossa
vida? Deus, onde estás? As imagens de Deus mudam, devem mudar, para que os
costumes e as imagens envelhecidas e antiquadas não nos impeçam de descobrir a
novidade da vocação de Deus na vida de hoje.
A água que Elias bebeu na fonte do Carmelo ajudou-o a
redescobrir a presença de Deus quando ele, perdido e desanimado, deitou debaixo
de uma árvore e pediu para morrer (1Rs 19,4). Ele imaginava Deus de um jeito:
poderoso, forte, ameaçador, como terremoto, tempestade e fogo. Mas Deus já não
estava no terremoto, nem na tempestade, nem no fogo (1Rs 19,11-12). A água que
Elias tinha bebido na fonte do monte Carmelo ajudou-o a superar as imagens
antiquadas de Deus e levou-o a discernir a presença divina, para além das
imagens, na brisa leve (1Rs 19,12), no silêncio sonoro, na noite escura, mais
clara que o sol do meio dia (Sl 139,12). Esta fonte brota sempre, até hoje,
mesmo de noite
Quem tiver sede, venha beber, disse Jesus à samaritana, ao
povo de Jerusalém e a todos nós (Jo 4,14; 7,37-39). No monte Carmelo existe a
fonte que, ao longo dos séculos, matou a sede do profeta Elias, do profeta
Eliseu, dos filhos dos profetas, dos santos e santas do Carmelo. Venha beber
desta fonte!
O que nos define como carmelitas: o DNA do Carmelo
Para aqueles primeiros frades, o monte Carmelo deixou de ser
uma simples referência geográfica para tornar-se um ideal de vida. Da mesma
maneira, no decorrer dos séculos, outros aspectos da vida no Carmelo deixaram
de ser simples fatos ou lugares históricos para se transformar em símbolos da
nossa própria existência, com os quais nos identificamos e que, sem palavras,
falam de nós para o mundo.
Enumeramos aqui doze destes referenciais simbólicos que nos
ajudam a perceber melhor os diversos aspectos do nosso carisma. Agradecemos a
nosso confrade frei Francisco Sales, carmelita da província Pernambucana, que
elaborou estes doze pontos tão significativos da nossa espiritualidade que aqui
transcrevemos:
Peregrinação
Os primeiros carmelitas são peregrinos, homens inconformados
com um modelo de viver a fé que, movidos pelo desejo de seguir a Jesus de forma
mais radical, buscam na terra santa, o Santo da terra. Constroem o novo,
aventuram-se para garantir a autenticidade de sua fé. O carmelita é por
natureza um inquieto, peregrino, inconformado com a mesmice da fé e da
história, aventureiro do absoluto.
Grupo, fraternidade
No Carmelo não há um líder carismático, um fundador no
estrito senso da palavra. Há um grupo que, movido por um desejo comum de
fidelidade ao evangelho, encontra-se e constrói um modo de vida. Para o
carmelita, a razão da vida tem sua fonte numa comunidade e está necessariamente
direcionada para a construção da fraternidade.
Corações famintos
Nós não conhecemos os nomes dos primeiros carmelitas, mas
podemos conhecer seus corações marcados por uma fome. Foram marcados por uma
profunda experiência de conversão, saíram do bulício das cidades para viverem
na solidão, iniciando uma vida juntos com o intuito de responderem à fome
profunda de seus corações.
Monte Carmelo
O caminho carmelita passa necessariamente pelo monte, com
todos os significados que a espiritualidade bíblica a ele atribui. É o lugar da
parada dos peregrinos, da subida, da jornada para a comunhão com o Senhor, etc.
O monte confere ao grupo um nome, uma identidade, uma terra. Eles irão levá-lo
a todos os recantos por onde se espalham, fazendo de suas habitações outros
pequenos Carmelos, lugares evocativos da aventura inicial.
Fonte de Elias
O ponto de parada dos primeiros carmelitas é a fonte do
profeta, marco memorial dos grandes feitos de Elias. Ao redor da fonte saciam
aquela sede mais intensa e, à imitação de Elias, deixam-se consumir de ardente
zelo pelo senhor Deus dos exércitos, anunciando a boa nova de Deus aos pobres
dos povoados ao redor do monte Carmelo.
Celas
Espaço de solidão e de cultivo da intimidade e do encontro
com Deus, chão, no qual se nutre a vida através da lectio divina, lugar de luta
contra toda forma de escravidão da pessoa e da conquista da liberdade interior.
Oratório
Centro de convergência da vida, lugar da celebração do
louvor comum que transforma a vida em sacramento da presença de Deus. Espaço
para a celebração da eucaristia, do encontro com o Cristo vivo e presente no
pão partilhado que se transforma em ponto gravitacional de toda a existência.
A senhora do lugar
O oratório é consagrado à virgem Maria, e à senhora do lugar
eles próprios se consagram. No coração da visão carmelita está Maria, como
força de inspiração a quem eles chamam irmã e na qual contemplam, como em
figura, realizado todo seu desejo de fidelidade ao projeto de jesus.
Um ritmo que orienta a vida
Viviam em um local aprazível e solitário; distantes o
suficiente uns dos outros; dedicavam o seu tempo à oração e reflexão; liam as
escrituras e procuravam marcar com suas linhas os seus corações; jejuavam;
trabalhavam e marcavam suas vidas ao compasso do silêncio; reuniam-se
diariamente para a eucaristia e semanalmente para revisar a vida à luz do
propósito comum; viviam uma vida de pobreza; seu líder era eleito e morava à
porta da habitação comum; acolhiam e serviam àqueles que batiam a sua porta;
desciam do monte para irradiar a boa nova entre o povo do lugar. A vida no
monte Carmelo centrava suas vidas dispersas e apaziguava suas mentes confusas,
libertando os seus corações das urgências e compulsões do tempo. Viveram quase
100 anos neste ritmo de vida.
A norma de vida
A vida vivida foi codificada numa regra que se transforma no
referencial permanente, na fonte que contém as indicações concretas para a
fidelidade, sempre aberta para aqueles que fizerem mais. Mais do que normativa,
a regra é um elemento carismático, indicativo e dinâmico.
Viagem de volta
Diante das dificuldades e perseguições, os carmelitas
fizeram a viagem de volta, transfigurados. Deixaram o Carmelo, mas o Carmelo
nunca mais os deixou, forjaram uma nova visão do Carmelo, como referencial
espiritual de suas vidas. O carmelita é aquele que, uma vez bebendo da fonte, é
capaz de refazer o caminho de volta e recontar a própria história a partir da
experiência vivida.
Mendicância
A dinâmica das ordens mendicantes é assimilada pelo Carmelo
desde a sua origem e sobretudo a partir do seu retorno na Europa. Momento
vivido com os conflitos próprios de toda mudança. A regra é adaptada à nova
realidade e mais uma nota é acrescida à sinfonia inicial do Carmelo,
incorporando outros elementos, como a itinerância, a simplicidade de vida, o
serviço ao povo de Deus nas realidades desafiadoras das cidades, a abertura ao
inesperado, etc.
Estes referenciais simbólicos estão impressos no coração de
cada carmelita, fazem parte do nosso DNA espiritual, renascem em cada nova
geração e nos ajudam a entender e a viver melhor o dom especial do Carmelo para
a Igreja. Eles nos provocam continuamente em nossos desejos e impulsos de
fidelidade, em nossos projetos e escolhas. Eles nos ajudam, diante dos desafios
com os quais nos confrontamos, a recriar o significado de nossa vida e de nossa
presença na Igreja e no mundo, mantendo a fidelidade à nossa identidade,
atualizando-os numa tensão fecunda entre passado e presente em vista do futuro.
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