A Festa de Cristo Rei: outubro ou novembro?
Entre as diferenças mais notórias entre o calendário litúrgico tradicional e o moderno, poucas são tão significativas quanto a data da Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.
1. Duas datas, duas teologias
- No
calendário tradicional (1962, Missa Tridentina): A festa é celebrada no
último domingo de outubro, antes de Todos os Santos.
- No
calendário reformado (1970, Missa de Paulo VI): A solenidade ocorre no
último domingo do Ano Litúrgico, ou seja, antes do Advento,
geralmente no fim de novembro.
Essas duas colocações não são meras trocas de agenda; elas
revelam duas leituras teológicas complementares — e, em certo sentido,
tensionadas — da Realeza de Cristo.
2. A Realeza de Cristo no mundo presente (Outubro)
“O império do nosso Redentor abrange todos os homens… Não há
diferença, neste assunto, entre o indivíduo e o Estado.” (Quas Primas,
18)
A escolha do último domingo de outubro não foi
acidental. Era o fecho simbólico do ano litúrgico, coroando os mistérios
da vida de Cristo antes de celebrar Seus santos — isto é, aqueles que já
vivem sob Seu reinado.
A proximidade com o Dia de Todos os Santos é, assim,
profundamente pedagógica: mostra que a santidade é o reflexo terreno da
Realeza divina.
Além disso, há um elemento histórico quase esquecido: o
último domingo de outubro era, nas terras protestantes, o Domingo da Reforma.
Colocar a festa de Cristo Rei nesse mesmo dia foi um gesto de afirmação
doutrinal e eclesial — um lembrete de que a Realeza de Cristo é também a
Realeza da Sua Igreja, visível e soberana sobre o mundo.
Textos litúrgicos (Forma Extraordinária)
- Coleta:
“Omnípotens sempitérne Deus, qui dilécto Fílio tuo universórum Rege, ómnia
instauráre voluísti: concéde propítius; ut cunctæ famíliæ Géntium, peccáti
vúlnere disgregátæ, eius suavíssimo subdántur império.”
“Deus onipotente e eterno, que quiseste restaurar todas as
coisas em teu Filho amado, o Rei do universo, concedei propício que todas as
famílias das nações, divididas pela ferida do pecado, se submetam ao seu
suavíssimo império.”
- Prefácio:
exalta o Reino que se manifesta na Cruz, mas se estende sobre
toda a criação: “regnum veritátis et vitæ, regnum sanctitátis et grátiæ,
regnum iustítiæ, amóris et pacis.”
A liturgia, portanto, não fala de um Reino distante, mas de
um reinado atual, real, que exige conversão social e política.
3. A Realeza de Cristo no fim dos tempos (Novembro)
Com a reforma litúrgica pós-conciliar, a festa foi deslocada
para o último domingo do Ano Litúrgico — uma semana antes do Advento.
Essa mudança, guiada por um enfoque pastoral e escatológico,
quis sublinhar que o Reino de Cristo, embora já inaugurado, não está
plenamente realizado. Ele cresce no meio das dores da história, e
sua plenitude virá apenas na Sua Segunda Vinda.
A ênfase desloca-se da Cristandade visível para a esperança
escatológica.
Textos litúrgicos (Forma Ordinária)
- Coleta:
“Deus eterno e todo-poderoso, que quisestes restaurar todas as coisas em
vosso amado Filho, Rei do universo, concedei benigno que todas a criaturas,
libertas da escravidão, sirvam à vossa majestade e vos glorifique sem
cessar.”
Evangelho (Ano C – Lc 23,35-43): Jesus é proclamado
rei no meio da zombaria. Sua coroa é de espinhos, Seu trono é a cruz, e Sua
sentença é misericórdia: “Hoje estarás comigo no paraíso.”
Nessa liturgia, Cristo reina pela entrega e pelo perdão, não pelo poder político — um Reino que começa no Calvário e se consuma no Céu. O contraste com o tom militante da festa tradicional é evidente: a Realeza de Cristo é aqui contemplada como vitória do amor crucificado, não como soberania social visível.
A liturgia contemporânea, portanto, suspende o Reino na espera, privilegiando a dimensão mística e futura da Realeza, menos política e mais interior.
4. Realeza presente e futura: duas faces do mesmo mistério
Não há contradição essencial entre as duas ênfases.
Cristo reina já, invisivelmente, nos corações que Lhe
obedecem; mas reinará plenamente quando tudo Lhe for submetido.
Contudo, o deslocamento da festa muda o foco pastoral e
espiritual da Igreja diante do mundo moderno:
|
Aspecto |
Calendário Tradicional (Outubro) |
Calendário Moderno (Novembro) |
|
Ênfase teológica |
Realeza social e atual de Cristo |
Realeza escatológica e futura |
|
Foco espiritual |
Conversão da sociedade e das nações |
Conversão pessoal e esperança final |
|
Símbolo litúrgico |
Cristo coroando o ano dos santos |
Cristo encerrando o tempo histórico |
|
Evangelho |
Jo 18,33-37 – “Meu Reino não é deste mundo” (mas está
neste mundo) |
Mt 25,31-46 – O Juízo Universal |
|
Tom pastoral |
Militante, afirmativo, missionário |
Contemplativo, escatológico, interior |
5. Reflexão final
A questão não é apenas quando celebrar Cristo Rei,
mas como O reconhecemos.
Negar a Realeza de Cristo no tempo presente é ceder terreno
ao relativismo e ao secularismo.
Mas esquecer Sua Realeza escatológica é cair no perigo do
triunfalismo.
Ambas as visões são necessárias — uma nos chama à ação, a
outra à esperança.
“Bem-aventurados os que nele confiam.” (Salmo 2)
Que a festa de Cristo Rei — celebrada em outubro ou em
novembro — desperte em nós o mesmo clamor de fé: “Viva Cristo Rei!”
Não apenas no Céu futuro, mas já agora, neste mundo
que ainda Lhe pertence.