A Presença Mariana no Carmelo (1968–1995): Um Estudo Reflexivo e Teológico


No encontro passado, mergulhamos na Liturgia Carmelitana, buscando compreender como a oração oficial da Igreja guarda uma hermenêutica teológica da presença de Maria no Carmelo. Agora, no sétimo passo da nossa caminhada formativa na Fraternidade Carmelitana da Campanha, deslocamos o olhar para um tempo recente e decisivo: o período entre 1968 e 1995. Foram anos de crise e reencontro, em que a Ordem do Carmo, diante das exigências do Vaticano II, precisou redefinir sua identidade sem perder o coração mariano que a sustenta desde as origens. É sobre esse itinerário de tensões, esquecimentos e redescobertas que vamos refletir neste encontro.

Introdução

O período entre 1968 e 1995 foi decisivo para a Ordem do Carmo. Nesse intervalo, a Ordem viveu uma crise de identidade, marcada pela necessidade de assimilar as orientações do Concílio Vaticano II, e ao mesmo tempo manter-se fiel à sua tradição secular. O Capítulo Geral de 1968, convocado para implementar as reformas conciliares, deu início a uma série de documentos que buscavam reinterpretar a vida carmelitana em chave contemporânea. No entanto, nem sempre a dimensão mariana, tão central ao Carmelo, foi devidamente valorizada. Este artigo percorre cada um dos tópicos apresentados no capítulo 7 do documento Uma Presença Amorosa: Maria e o Carmelo, examinando como Maria foi entendida entre 1968 e 1995 e oferecendo uma leitura crítica e teológica desses momentos.

Capítulos Gerais de 1968 e 1971

O Capítulo de 1968 produziu o delineatio da vida carmelitana, fortemente dependente do Vaticano II e da teologia europeia e norte-americana. Seu esforço foi o de integrar tradição e atualização, colocando no centro a Regra, a figura de Cristo e, como modelos, Maria e Elias. Nos três artigos dedicados a eles, depois incorporados às Constituições de 1971, ambos são apresentados como testemunhas da presença de Deus, que dão sentido à existência humana. Maria aparece como modelo da Igreja e ideal de fé, esperança e caridade, totalmente aberta à ação divina.

As Constituições de 1971, as primeiras desde 1930, assumem amplamente essa visão. Elas recordam a origem mariana da Ordem, ao mencionar a primeira igreja dedicada a Maria, e reafirmam-na como Padroeira, Mãe e Ornamento. Ressaltam também a devoção ao Escapulário como sinal da proximidade de Maria com os carmelitas e com o povo. Essa retomada da tradição, no entanto, convive com a nova teologia conciliar, sem oferecer uma síntese coesa entre ambos.

Outro ponto relevante é a insistência na vida fraterna como lugar de escuta da Palavra, tomando Maria como modelo. Ela, que guardou a Palavra no coração, é exemplo para os carmelitas que devem tornar-se agentes da Palavra no mundo. Essa inspiração mariana, no entanto, aparece mais como ilustração espiritual do que como eixo estruturante.

Deve-se notar que o Capítulo de 1968, apesar de citar Maria e Elias, não conseguiu recuperar com vigor as tradições marianas próprias da Ordem. Sua dependência do vocabulário conciliar e sua preocupação em atualizar a linguagem fizeram com que a mariologia carmelitana soasse, em alguns pontos, secundária. Isso mostra que, naquele momento, a prioridade era redefinir a identidade da Ordem no novo contexto eclesial.

Em síntese, 1968 e 1971 foram fundamentais para reposicionar o Carmelo no pós-Concílio, mas ainda não encontraram um equilíbrio entre a herança mariana e a necessidade de abertura ao mundo. O resultado foi um texto de transição, no qual Maria está presente, mas não ocupa plenamente o papel que sua tradição no Carmelo exigiria.

Documentos de 1972-1978

Após o Capítulo de 1971, os documentos elaborados pelo Conselho das Províncias e outros encontros revelam uma fase de escassez mariológica. O documento de 1972, Comprometidos com o serviço da Fraternidade, concentra-se em aspectos práticos da vida comunitária e da justiça social, sem qualquer referência a Maria ou Elias. O clima de Medellín e o surgimento das teologias da libertação marcaram fortemente essa etapa.

Em 1973, no encontro de Aylesford sobre a oração, novamente não há menção a Maria, embora realizado em um santuário mariano. Isso mostra que a Ordem estava voltada a redescobrir práticas espirituais e fraternas em chave horizontal, muitas vezes em detrimento da dimensão mariana. Também em 1973, a nova fórmula de profissão religiosa incluiu Maria e Elias como exemplos de seguimento, mas sem qualquer consagração direta a Maria, revelando certo receio teológico de exagerar sua figura.

Os anos seguintes mantêm esse padrão. Entre 1974 e 1977, os documentos não destacam Maria de modo relevante, com exceção da Regra da Ordem Terceira (1977), que incorpora alguns elementos da exortação Marialis cultus, mas sem grande originalidade carmelitana. Até mesmo em encontros que poderiam dar espaço à mariologia, como o de Taizé em 1978, não houve menções significativas a Maria.

Essa ausência mariana em documentos de 1972 a 1978 é sintomática. O Carmelo se envolveu profundamente com as questões de justiça, fraternidade e oração, mas deixou em segundo plano sua própria identidade mariana. Isso criou uma lacuna na reflexão espiritual da Ordem, tornando necessário um reencontro posterior com sua fonte.

Em termos críticos, essa etapa mostra a vulnerabilidade da espiritualidade carmelitana quando a mariologia não ocupa lugar central. Sem Maria, o Carmelo corre o risco de diluir-se em propostas genéricas de vida comunitária e compromisso social, perdendo o seu diferencial histórico.

V Conselho das Províncias 1979 – Retorno à Fonte

O V Conselho das Províncias, realizado no Monte Carmelo em 1979, marcou um divisor de águas. Com o tema “Retorno à Fonte”, o documento final recupera o significado bíblico de Maria e Elias, recolocando-os no coração da identidade carmelitana. Essa redescoberta nasce do reconhecimento de que sem Maria a Ordem perdia sua alma.

Maria é apresentada como Virgem da escuta e da fidelidade, aquela que acolhe a Palavra de Deus e a transforma em vida. A imagem bíblica substitui o tom devocional superficial, colocando-a como modelo do discípulo perfeito, espelho de virtude e encarnação das bem-aventuranças. Essa abordagem dá nova vitalidade à tradição carmelitana.

Outro aspecto forte é a ênfase na comunhão de Maria com a obra redentora do Filho. O documento descreve sua participação ativa na história da salvação, em especial na cruz, onde, com lucidez de fé, ela aceita a dor e se abre à fecundidade do amor. Assim, Maria é vista não apenas como intercessora, mas como colaboradora da missão de Cristo.

O Conselho também sublinha a tríplice abertura que Maria inspira: a Deus, na escuta e oração; a si mesmo, na vivência da identidade; e aos outros, no serviço generoso, especialmente aos humildes e abandonados. Essa tríplice via se torna uma síntese pedagógica para os carmelitas, que devem viver a espiritualidade como encontro integral com Deus e com o próximo.

A partir de 1979, a Ordem reencontrou sua raiz mariana, agora relida em chave bíblica e eclesial. Essa foi a grande virada: deixar de lado a omissão dos anos anteriores e recolocar Maria como fonte inspiradora da vida carmelitana, abrindo caminho para as sínteses mais maduras que surgiriam em 1988, 1992 e, especialmente, em 1995.

Documentos de 1983-1991

Na década de 1980, a Ordem viveu uma forte inserção nas questões sociais e comunitárias, influenciada pela Conferência de Puebla (1979) e pelas teologias da libertação. Maria foi apresentada pela Igreja latino-americana como Mãe dos pobres, mulher servidora e estrela da evangelização. Esse contexto influenciou os documentos da Ordem, embora as menções explícitas a Maria ainda fossem escassas.

Em 1983, o Prior Geral Falco Thuis escreveu uma carta que marcou época, destacando a contemplação como fio condutor da vida carmelitana. Nela, Maria aparece como modelo de vida consumada em Cristo, discípula que guarda e medita a Palavra. A carta representa uma tentativa de reequilibrar o excesso de ênfase horizontal dos anos anteriores, retomando a dimensão espiritual e mariana.

Outro marco foi a Ratio institutionis vitæ carmelitanæ (RIVC), aprovada em 1988. Esse guia de formação dedica seções importantes à mariologia, apresentando Maria como Virgem do coração novo, discípula da Sabedoria, mãe e irmã da comunidade, portadora da Boa Nova e presença junto ao povo através do Escapulário. Esse texto conseguiu unir tradição carmelitana e releitura pós-Vaticano II.

Em encontros como o de Fátima (1985), os documentos retomaram títulos clássicos como Padroeira, Virgem Puríssima e Ornamento, mostrando um ressurgimento do vocabulário tradicional. Ainda que discretas, essas menções revelam uma recuperação da identidade mariana da Ordem em um contexto de internacionalização e fraternidade.

Apesar desses avanços, ainda se percebem fragilidades. A mariologia não foi o foco central dos documentos, mas sempre secundária às questões de justiça, paz e fraternidade. Contudo, a década de 1980 preparou o terreno para que, nos anos seguintes, houvesse textos mais sólidos e coesos sobre Maria, culminando nas Constituições de 1995.

Carta do Prior Geral (1988)

No Ano Mariano de 1988, o Prior Geral John Malley escreveu uma carta fundamental, estruturada em três pontos: conhecer melhor Maria, amar mais Maria e imitar fielmente Maria. A carta se baseia em Lumen gentium, Marialis cultus e Redemptoris Mater, e buscou recolocar Maria no centro da espiritualidade carmelitana.

A carta não se contenta em repetir fórmulas antigas, mas faz uma síntese criativa entre tradição e renovação. Malley resgata a herança mariana do Carmelo e a atualiza com os documentos da Igreja, oferecendo uma leitura que é ao mesmo tempo fiel à tradição e relevante para o presente. Esse equilíbrio a torna um texto de grande densidade.

Outro mérito é a insistência na dimensão relacional: Maria é apresentada como aquela que inspira proximidade, que ensina o amor e que conduz à comunhão com Cristo. Ela é mestra de discipulado e não apenas objeto de devoção. Isso dá à carta um caráter pastoral e pedagógico, orientado para a vida concreta.

Infelizmente, a carta sofreu com problemas de difusão e não recebeu a devida atenção em toda a Ordem. Isso limita seu impacto, embora seu conteúdo seja de grande valor. Ainda assim, ela permanece como um dos melhores exemplos de recuperação mariológica do período.

Carta dos Dois Gerais (1992)

Em 1992, os Priores Gerais John Malley e Camillo Maccise publicaram uma carta conjunta após a Congregação de Caracas. Seu tema principal era a Nova Evangelização, mas com conteúdo mariano significativo. A carta lembra que os carmelitas, desde a primeira evangelização da América Latina, difundiram a devoção a Nossa Senhora do Carmo e viveram como testemunhas de oração.

O texto insiste que o carisma da Ordem é viver em fidelidade a Cristo segundo o exemplo de Elias e de Maria. Maria é apresentada como modelo de contemplação, fraternidade e profecia, três elementos centrais da espiritualidade carmelitana. Essa tríade conecta mariologia com missão contemporânea.

Outro ponto importante é a relação entre Maria e a vida comunitária. A carta afirma que Maria é símbolo e modelo da comunidade, inspirando fraternidade e ajudando os carmelitas a construir comunidades de amor e justiça. Essa aplicação prática da mariologia é um ganho em relação a textos anteriores.

A carta também destaca a religiosidade popular, lembrando a importância do Escapulário e da devoção a Maria na evangelização. Nesse ponto, conecta tradição e pastoral, mostrando que os símbolos marianos não são apenas internos à Ordem, mas instrumentos eficazes de evangelização popular.

Em conclusão, a carta dos dois Gerais representa um amadurecimento: não se trata apenas de citar Maria, mas de aplicá-la às exigências da evangelização. Sua força está na capacidade de unir reflexão bíblica e tradição carmelitana a uma missão atualizada. É um texto de referência para a mariologia pastoral.

As Novas Constituições (1995)

As Constituições de 1995 são o ápice da mariologia carmelitana no período estudado. Após ampla consulta à Ordem, o texto apresenta Maria como Virgem do coração novo, da escuta contemplativa, discípula fiel e Mãe do Senhor. É uma mariologia bíblica, cristológica e eclesial, que integra as descobertas conciliares com a tradição carmelitana.

Maria é apresentada como modelo de comunidade: caminha com os discípulos, ensina em Caná, sofre na Cruz, participa da ressurreição e da oração contínua em Pentecostes. Ao lado dos carmelitas, ela é Mãe e Irmã, presente no cotidiano da vida fraterna. Essa visão dá à mariologia carmelitana um rosto profundamente comunitário.

Outro ponto é a recuperação dos títulos tradicionais: Padroeira, Mãe, Esplendor e Virgem Puríssima. Longe de serem apenas decorativos, esses títulos são reinterpretados à luz da Bíblia e do Vaticano II. O Escapulário recebe atenção como sacramental e sinal de consagração, meio de evangelização e expressão do amor materno de Maria pelo povo de Deus.

As Constituições ainda ampliam a dimensão pastoral ao destacar os santuários marianos. Estes são descritos como centros de escuta, celebração litúrgica, acolhimento, solidariedade e ecumenismo. Assim, a devoção mariana é inserida no coração da missão evangelizadora e social da Ordem.

Em suma, as Constituições de 1995 oferecem uma síntese madura e sólida. Maria não aparece como elemento secundário, mas como eixo estruturante da identidade carmelitana. É nesse texto que tradição e aggiornamento finalmente se encontram em harmonia.

Conclusão

O exame dos documentos entre 1968 e 1995 mostra uma trajetória marcada por oscilações, ausências e reencontros. De 1968 a 1978, a mariologia foi tratada de modo secundário, enquanto a Ordem buscava redefinir sua identidade frente aos desafios sociais e eclesiais. A partir de 1979, houve um retorno consciente à fonte bíblica, que preparou o terreno para uma mariologia mais sólida.

As décadas seguintes trouxeram textos importantes, como a carta de 1988 e a carta conjunta de 1992, que mostraram ser possível aplicar a tradição mariana a contextos contemporâneos. Contudo, foi somente com as Constituições de 1995 que a Ordem alcançou uma síntese madura, integrando tradição, Escritura e missão.

A crítica, porém, é inevitável. Muitas vezes, Maria foi lembrada de forma periférica, quando deveria estar no centro. Essa omissão fragilizou a identidade carmelitana, pois sem Maria a Ordem corre o risco de perder seu diferencial espiritual e missionário. A história mostra que sempre que o Carmelo retorna a Maria, reencontra sua força e autenticidade.

Portanto, a grande lição desse período é clara: a espiritualidade carmelitana só é plenamente fiel a si mesma quando respira Maria em tudo o que faz. Não como adorno devocional, mas como chave de identidade, inspiração de fraternidade.

Por Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância 

 

Referência bibliográfica

O’DONNELL, Christopher. Uma Presença Amorosa: Maria e o Carmelo – Um Estudo da Herança Mariana na Ordem. Melbourne: Comunicações Carmelitanas, 2000.