A Doutrina da dupla Aliança à luz da Teologia Católica Tradicional: uma análise crítica do Catecismo de João Paulo II

Introdução

Com o advento do Concílio Vaticano II e a subsequente reconfiguração do relacionamento da Igreja com o judaísmo, inaugurou-se um novo horizonte de reflexão teológica que, embora motivado por intenções ecumênicas e diplomáticas, gerou também interpretações ambíguas e, por vezes, teologicamente problemáticas. Uma das mais controversas dessas interpretações é a chamada “doutrina da dupla aliança”, segundo a qual a Antiga Aliança — especialmente no que concerne à Aliança Mosaica — não teria sido revogada, mas sim continuaria em vigor paralelamente à Nova Aliança instaurada por Cristo.

Essa tese, que encontra ecos no Catecismo da Igreja Católica promulgado sob o pontificado de João Paulo II, particularmente na expressão de que “o Antigo Testamento nunca foi revogado” (§ 121), tem sido utilizada por diversos teólogos e setores da Igreja como fundamento para sustentar a validade soteriológica da religião judaica em sua forma pós-cristã. Tal interpretação, no entanto, exige uma análise acurada à luz da Tradição, do Magistério perene e das Escrituras, uma vez que está em jogo não apenas uma questão de exegese ou de política inter-religiosa, mas a própria estrutura da economia salvífica e a unicidade da mediação de Cristo.

Este artigo pretende, portanto, oferecer uma análise crítica e sistemática dessa doutrina, confrontando-a com a teologia tradicional da Igreja, com os ensinamentos conciliares e pós-conciliares em continuidade hermenêutica, e com a tradição patrística e escolástica. Argumentaremos que a concepção de uma Aliança Mosaica em vigor após a vinda de Cristo configura uma ruptura com a Fé Católica na Nova e Eterna Aliança, promovendo uma antropologia da salvação paralela e concorrente, absolutamente incompatível com a fé da Igreja.

Essa reflexão se insere numa investigação teológica mais ampla, da qual já oferecemos contribuições no artigo “As perfídias e infâmiasdo amarelinho: uma revisão crítica das novas categorias eclesiológicas no Catecismo Pós-Conciliar”, no qual denunciamos a erosão das categorias dogmáticas tradicionais sob o influxo de uma linguagem pastoral fluida e irenista. Tal linguagem, embora motivada por preocupações diplomáticas compreensíveis, não pode ser aceita em detrimento da clareza doutrinal nem da integridade da Fé Apostólica. Como recordava Santo Atanásio em tempos de confusão: Illi habent ecclesias, nos autem fidem Apostolicam.

I. Fundamentação Dogmática: a Unicidade irrepetível da Nova Aliança

A doutrina da única economia da salvação em Cristo é um dos pilares da fé cristã, definida com clareza em diversos concílios ecumênicos. A Bula Cantate Domino do Concílio de Florença (1442) é taxativa ao declarar que ninguém fora da Igreja Católica — incluindo judeus, hereges e cismáticos — pode alcançar a salvação eterna, a menos que se incorpore à Igreja antes da morte. Essa afirmação não se restringe ao contexto histórico de sua emissão, mas expressa um juízo teológico universal, fundado na revelação neotestamentária.

O Concílio de Trento, ao tratar da justificação (Sessão VI), rejeita explicitamente a validade das obras da Lei Mosaica como meio de justificação. O mesmo se vê na epístola aos Hebreus (8,6-13), onde o autor sagrado, refletindo sobre a profecia de Jeremias, afirma que a Nova Aliança tornou obsoleta a antiga, a ponto de estar “prestes a desaparecer”.

São Tomás de Aquino, em sua Summa Theologiae (I-II, q. 107), explica que a Nova Lei, que é a graça do Espírito Santo, supera e consuma a Antiga, a qual era meramente figurativa e preparatória. Portanto, a aceitação de uma continuidade ontológica da Antiga Aliança enquanto via salvífica após a Redenção equivale a negar a eficácia do sacrifício de Cristo e a centralidade do mistério pascal.

II. Os Padres da Igreja: de Israel segundo a carne ao Israel segundo o espírito

A patrística fornece um testemunho uniforme sobre a superação da Antiga Aliança em Cristo. Desde os escritos de Santo Inácio de Antioquia até os tratados de Santo Agostinho, a compreensão é clara: Israel segundo a carne foi figura do Israel segundo o espírito, isto é, a Igreja.

Santo Irineu de Lyon, em Adversus Haereses, argumenta que os patriarcas e profetas foram salvos pela fé no Cristo que viria, e não pela Lei mosaica em si mesma. A Lei, nesse contexto, tinha função pedagógica e tipológica. São João Crisóstomo vai além e denuncia, em suas Homilias Contra os Judeus, a persistência do culto levítico após Cristo como rejeição ativa ao Messias.

A teologia patrística, em uníssono, afirma que com a Encarnação, Morte e Ressurreição de Cristo, todo o Antigo Testamento adquire sua plena inteligibilidade. A Igreja, Corpo de Cristo, torna-se o novo Israel, herdeira legítima das promessas feitas a Abraão. Continuar a afirmar a validade autônoma da Aliança mosaica após Pentecostes é, na ótica patrística, não apenas erro, mas apostasia.

III. A ambiguidade Teológica do Catecismo de João Paulo II

O Catecismo da Igreja Católica, no § 121, afirma que “o Antigo Testamento nunca foi revogado”. Em um sentido hermenêutico tradicional, essa afirmação pode ser corretamente compreendida como a permanência do valor canônico, pedagógico e tipológico do Antigo Testamento. Contudo, quando essa afirmação é extrapolada para significar que a Lei mosaica permanece em vigor como via válida de salvação, incorre-se em grave distorção teológica.

Alguns pronunciamentos magisteriais contemporâneos adotaram uma linguagem imprecisa, referindo-se à “aliança nunca revogada” com o povo judeu, sem especificar se se trata de eleição histórica ou de via salvífica. Tal imprecisão é explorada por teólogos que promovem a Teologia das Duas Alianças, sustentando que a missão da Igreja entre os judeus não seria evangelizadora, mas apenas dialógica.

A Dominus Iesus (2000), publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé e aprovada por João Paulo II, representa uma importante correção a essas ambiguidades, ao reafirmar com vigor que “não se pode entender como caminho autônomo de salvação aquele que consiste na simples observância da Lei Mosaica” (n. 22). Portanto, mesmo reconhecendo a eleição histórica de Israel, a Igreja rejeita qualquer via salvífica que não passe por Cristo.

IV. Escatologia, Judaísmo e a tentação da falsa Universalidade

A proposta de reconstrução do Terceiro Templo em Jerusalém, fomentada por setores do sionismo religioso e apoiada por movimentos cristãos sionistas, reintroduz de maneira explícita o culto levítico como horizonte teológico. Essa restauração é interpretada pela Tradição patrística como um dos sinais da manifestação do Anticristo.

São Cirilo de Jerusalém e Santo Hipólito advertem sobre uma futura impostura religiosa centrada em Jerusalém, onde o Anticristo se sentará como se fosse Deus, usurpando o lugar do verdadeiro culto. A teologia bíblica do Novo Testamento, especialmente no Evangelho de João (2,21) e na Carta aos Hebreus, estabelece que o verdadeiro Templo é o Corpo de Cristo, prolongado sacramentalmente na Igreja.

Qualquer tentativa de restaurar o culto animal levítico implica a negação objetiva da eficácia do sacrifício redentor de Cristo e, portanto, deve ser compreendida não como continuação da Revelação, mas como sua recusa. O Catecismo (­­­§§ 675-677) alude claramente a essa impostura escatológica, que se apresentará como solução universal e religiosa, substituindo a verdadeira fé por uma religião naturalista e imanentista.

Considerações Finais

A doutrina da dupla aliança, em sua formulação contemporânea, constitui um desafio teológico e pastoral de primeira ordem. Ao afirmar, ainda que implicitamente, a possibilidade de salvação ordinária fora da mediação de Cristo, tal doutrina compromete a integridade da fé cristológica, subverte a missão universal da Igreja e abre espaço para uma escatologia distorcida e perigosa.

A Tradição, os concílios e os Padres da Igreja são inequívocos: a Nova Aliança em Cristo é definitiva, irrepetível e universal. Toda salvação, antes ou depois da Encarnação, realiza-se unicamente por meio do Verbo Encarnado. Não há espaço teológico legítimo para uma via paralela de salvação que dispense a fé em Cristo.

Urge, portanto, recuperar uma hermenêutica de continuidade e fidelidade, que reconheça o valor histórico e pedagógico da Antiga Aliança sem jamais cair na tentação de diluir o núcleo escatológico e salvífico da fé cristã: Jesus Cristo é o único Mediador entre Deus e os homens, ontem, hoje e sempre.

Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância

Referências Bibliográficas

Bento XVI (Joseph Ratzinger). Dominus Iesus. Vaticano, 2000.

Catecismo da Igreja Católica. Edição Típica Vaticana, 1992.

Concílio de Florença. Bula Cantate Domino, 1442.

Concílio de Trento. Sessão VI, Decreto sobre a Justificação.

Crisóstomo, João. Homilias Contra os Judeus.

Irineu de Lyon. Adversus Haereses.

Sagrada Escritura. Bíblia de Jerusalém.

Tomás de Aquino, São. Summa Theologiae. Edição Leonina.