As perfídias e infâmias do amarelinho: uma revisão crítica das novas categorias eclesiológicas no Catecismo Pós-Conciliar
Introdução: para além da pastoralidade ambígua
Nas últimas décadas, a teologia católica tem enfrentado um
deslocamento paradigmático, especialmente perceptível a partir das orientações
emanadas do Concílio Vaticano II e, posteriormente, na promulgação do Catecismo
da Igreja Católica (1992). O que se apresenta como renovação pastoral
revela, em muitos casos, não apenas um aggiornamento linguístico, mas
uma inflexão ontológica na autocompreensão da Igreja. Este ensaio busca
oferecer uma análise crítica das formulações eclesiológicas pós-conciliares à
luz da teologia clássica e do magistério precedente, especialmente no que tange
à doutrina da salvação, da eclesiologia e da responsabilidade histórica do povo
de Deus.
Sobre a qualificação Eclesial dos Não-Católicos: uma construção teológica problemática
O §818 do Catecismo reconhece como cristãos legítimos os
membros de comunidades oriundas da Reforma, afirmando que são “incorporados em
Cristo” e merecedores de fraterna reverência. No §819, essas comunidades
eclesiais são até mesmo qualificadas como “meios de salvação”.
Do ponto de vista da tradição dogmática, esta abordagem
representa uma significativa atenuação do axioma extra Ecclesiam nulla salus,
explicitamente definido por Inocêncio III, Bonifácio VIII e reiterado pelo
Concílio de Florença. Ainda que se possa admitir, com base em Pio IX (Quanto
Conficiamur Mœrore), que a ignorância invencível mitigue a culpa subjetiva,
não é teologicamente sustentável equiparar realidades eclesiais objetivamente
cismáticas ou heréticas a instrumentos ordinários da graça salvífica. A ideia
de “incorporação imperfeita” carece de definição ontológica rigorosa e
compromete a unicidade da Igreja una, santa, católica e apostólica.
A questão da Antiga Aliança: continuidade ou superação?
Os §§839–843 do Catecismo afirmam que a Antiga Aliança com
Israel “nunca foi revogada por Deus”. Embora essa formulação pretenda respeitar
a integridade da história da salvação, ela tensiona de maneira considerável a
teologia paulina e o ensinamento conciliar anterior. São Paulo, na Epístola aos
Hebreus (8,13), fala da Antiga Aliança como “obsoleta” e prestes a desaparecer,
ao passo que em Colossenses (2,14) afirma que o “escrito da dívida” foi cravado
na cruz.
Sustentar a perenidade teológica da Antiga Aliança, sem a
devida articulação com sua consumação cristológica, aproxima-se de uma forma de
teologia das duas alianças que foi explicitamente rejeitada por séculos de
magistério católico. A nomenclatura “irmãos mais velhos”, embora pastoralmente
comedida, carece de fundamentação soteriológica precisa.
Responsabilidade pelo suplício de Cristo: uma inversão hermenêutica
O §597 do Catecismo distingue corretamente entre a
responsabilidade histórica e a culpabilidade coletiva dos judeus. Contudo, o
§598, ao afirmar que os cristãos possuem a “mais grave responsabilidade” na
crucificação de Cristo, parece incorrer em um deslocamento teológico que não
corresponde ao testemunho neotestamentário nem à tradição patrística.
A hermenêutica inversiva aqui aplicada resulta em um
anacronismo teológico e moral. A autocrítica cristã, por mais nobre que seja,
não pode ser conduzida à custa da narrativa bíblica e da responsabilidade
histórica daqueles que efetivamente exigiram a morte do Redentor. A exegese
tradicional de Mt 27,25, por exemplo, nunca foi interpretada como mera
retórica, mas como atestação de uma recusa concreta.
O risco do universalismo teológico: entre a pastoralidade e a doutrina
Declarações recentes do Papa Francisco — como a feita na
paróquia San Paolo della Croce (2018) sobre um pai ateu, ou a especulação de
que o inferno estaria vazio (Che tempo che fa, 2024) — suscitam
preocupações legítimas sobre a penetração de um universalismo implícito no
discurso magisterial contemporâneo.
A tradição doutrinal é clara: Nosso Senhor fala em termos
inequívocos sobre a realidade da danação eterna (cf. Mt 7,13; Mt 25,41). A
condenação de Judas Iscariotes, por exemplo, foi entendida pela teologia
tradicional como exemplar da possibilidade real da condenação. O
especulativismo otimista quanto à salvação de todos contraria não apenas a
letra da Escritura, mas também o consenso dos Padres e dos concílios.
Considerações finais: por uma restauração da clareza teológica
A tentativa de reconstruir uma linguagem eclesial dialogal e
inclusiva, embora motivada por imperativos pastorais compreensíveis, não pode
se dar em detrimento da clareza doutrinal. A verdade evangélica é, por
natureza, contracultural e divisiva (cf. Lc 12,51). O colapso das categorias
teológicas tradicionais sob o peso de uma pastoralidade fluida conduz à erosão
da identidade católica.
A Tradição, longe de ser um arquivo obsoleto, constitui a
expressão viva da fé apostólica. O desafio contemporâneo não é o de substituir
o dogma pela diplomacia, mas o de anunciar a verdade com caridade, sem que uma
suplante a outra. Como asseverou Santo Atanásio em tempos de confusão: Illi
habent ecclesias, nos autem fidem Apostolicam.
Sancte Michaël Archangele, defende nos in proelio!
Referências bibliográficas
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