Se os amores hão de me matar, que seja agora – Uma crônica ao pé da manjedoura

Há declarações que atravessam os séculos como flechas de fogo. Não pedem licença, não fazem rodeios. Apenas nos atingem. Assim é a coplilla de São João da Cruz, cantada com os pés descalços no frio do Natal, diante do Menino Deus, envolto em palha e silêncio:

“Meu doce e terno Jesus, se os amores hão de me matar, que seja agora o lugar”.

Não é verso de poeta acomodado, é brado de um homem consumido por um amor que não conhece meias-medidas. São João da Cruz — esse gigante miúdo, esse trovador da alma — não fala de amor romântico, sentimental, comercializado em vitrines. Fala do Amor com letra maiúscula, o que arranca o coração e o devolve transfigurado. O Amor que encarna e chora num estábulo esquecido de Belém.

Naquela noite fria, quando o Verbo se fez carne, São João entendeu tudo: Deus se fez criança não para ser admirado, mas amado até as últimas consequências. Ali não há lugar para amor morno, devocionismo de catálogo ou piedade de papel. Ou se ama até morrer — ou não se ama de verdade.

O “se amores me hão de matar” não é drama. É convite. É o Carmelo em carne viva. É a alma que, tocada por Deus, já não se basta mais, já não quer viver de qualquer jeito. E diz: “Que seja agora, Jesus. Mata-me de amor. Porque fora de Ti, só resta sobrevivência. Contigo, até a morte é doce”.

A manjedoura vira altar. O palheiro, trono. O Menino, Rei. E João, o frade, vira amante sem pudor, que canta baixinho ao Divino Infante como quem suplica: “Não me deixes viver sem ser totalmente Teu”.

Hoje, perdidos em luzes de LED e presépios de shopping, talvez precisemos redescobrir esse grito. Porque amar de verdade ainda é perigoso. Ainda exige morrer. Morrer para o ego, para o conforto, para a vaidade. Mas quem escuta João da Cruz entende que não há outro caminho para viver de verdade senão esse: morrer por Amor.

Então, diante da gruta, no silêncio da noite mais santa, talvez seja hora de dizer com ele, com os olhos no Menino: “Se o Amor vai me matar... que seja agora”.

Por seu Irmão Carmelita Secular da Antiga Observância B.