A Primeira Carmelita: Maria nas Origens da Ordem


Dando continuidade ao nosso caminho de reflexão sobre a espiritualidade mariana no Carmelo, apresento aqui um resumo do terceiro encontro de formação da Ordem Terceira do Carmo — Fraternidade da Campanha. Neste texto, mergulhamos nas raízes históricas da devoção a Nossa Senhora no seio da Ordem. Desde os primeiros passos dos eremitas no Monte Carmelo, a figura de Maria foi se destacando, até se tornar alma e modelo da vida carmelitana. É um convite a revisitar as origens para compreender como, aos poucos, Maria deixou de ser apenas presença inspiradora para se tornar a Mãe e Padroeira por excelência dos carmelitas.

Evolução da Consciência Mariana da Ordem

A evolução da consciência mariana na Ordem Carmelita, destacamos que as descobertas sobre essa evolução foram desenvolvidas nos séculos XIII e seguintes. Para entender essa transformação, é importante ter empatia pela situação dos carmelitas nos séculos XIII e XIV, evitando uma visão negativa sobre sua complexa evolução.

Os irmãos carmelitas começaram a migrar para a Europa por volta de 1238, levando consigo a Regra e um modo de vida contemplativo. Após perderem sua capela no Monte Carmelo, dedicaram um mosteiro à Maria na Europa em 1235. Ao chegarem, encontraram um ambiente rico em devoção mariana, o que facilitou sua integração. Eles escolheram Maria como Padroeira da Ordem, evidenciado por declarações de líderes como Pierre de Millau e John Baconthorpe, que ressaltaram a fundação da Ordem em honra a Maria.

Além do vínculo com Maria, outros elementos como o ideal contemplativo e a memória de Elias também foram fundamentais na formação da identidade carmelita durante esse período.

A Origem da Ordem a partir de Elias

A origem da Ordem Carmelita, enfatiza a figura de Elias como um elemento central na construção de sua identidade. A Rubrica prima das Constituições de 1281 afirma claramente essa conexão, que surgiu em resposta à falta de um fundador histórico reconhecido, como São Domingos ou São Francisco com suas respectivas Ordens. Os carmelitas viam Elias não apenas como um profeta, mas também como um modelo de vida contemplativa, semelhante a Moisés, que encontrou Deus no Monte Horeb.

Apesar da oposição enfrentada na Europa, os carmelitas acreditavam que seu estilo de vida eremítico era autêntico e enraizado em tradições antigas. Aqui destacamos um detalhe importante para o período, era a importância dos mitos na Idade Média para transmitir verdades espirituais. Em vez de questionar a historicidade do mito de Elias, é mais relevante entender seu significado e a inspiração que ele proporcionava aos carmelitas.

Elias era visto como um ideal de continência e dedicação a Deus, representando o desejo dos fundadores da Ordem de estabelecer uma continuidade histórica com o profeta. Embora as tentativas de conectar a Ordem diretamente a figuras bíblicas possam carecer de valor histórico rigoroso, elas têm um significado profundo em termos de identidade e espiritualidade para os carmelitas. Essa busca por raízes espirituais reflete uma verdade mais ampla sobre quem eles eram e o que representavam em sua prática religiosa.

Maria e Elias – Maria e o Carmelo

A inserção de Maria no mito ou hagadá de Elias representa uma evolução significativa na espiritualidade carmelita. À medida que a Ordem Carmelita se desenvolveu, a figura de Maria começou a ser associada à tradição de Elias, reforçando a conexão entre o Antigo Testamento e a devoção mariana.

Maria, como mãe de Jesus e figura central na fé cristã, passou a ser vista não apenas como uma intercessora, mas também como um modelo de contemplação e entrega a Deus. Essa associação com Elias, um profeta que buscou a presença divina em solidão e oração, permitiu que os carmelitas vissem em Maria uma continuidade da busca espiritual que Elias representava.

Assim, Maria foi gradualmente integrada ao legado dos eremitas do Carmelo, simbolizando tanto a maternidade espiritual quanto o ideal contemplativo da Ordem. Essa relação fortaleceu a identidade carmelita e aprofundou sua devoção mariana, refletindo uma rica tradição que une as figuras bíblicas com a prática religiosa dos carmelitas ao longo dos séculos.

Os Primeiros Escritores

A importância da figura de Maria na tradição carmelita, conforme documentado em textos históricos e crônicas. A Crônica De inceptione ordinis, datada de cerca de 1324, menciona que, após a Encarnação, os seguidores de Elias e Eliseu construíram uma igreja em honra à Bem-aventurada Maria perto da fonte associada a Elias. Isso sugere uma continuidade espiritual entre os profetas do Antigo Testamento e a devoção mariana que se desenvolveu na Ordem Carmelita.

A referência ao patriarca Aimérico, que viveu até 1196, indica que os eremitas já eram conhecidos como “Irmãos eremitas da Bem-aventurada Maria do Monte Carmelo” nesse período. O Speculum de Jean de Cheminot, escrito por volta de 1337, reforça essa ideia ao afirmar que os sucessores de Elias e Eliseu adotaram a castidade em dedicação ao Senhor, alinhando-se com o ideal contemplativo da Ordem.

Citamos alguns textos do Antigo Testamento — Isaías 32, 2 e Cântico dos Cânticos 7, 6 — que são aplicados a Maria, destacando sua beleza e virtudes. A memória legendária que menciona as visitas de Maria ao local dos eremitas enfatiza sua santidade e a conexão especial entre ela e os carmelitas. Essa presença simbólica é vista como um reconhecimento da devoção dos eremitas.

Além disso, Jean de Cheminot menciona um oratório dedicado à Virgem Maria construído após a Ascensão, o que reforça ainda mais a identidade mariana da Ordem. O título “Irmãos da Ordem da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo”, reconhecido pela Santa Sé posteriormente, solidifica essa ligação e destaca a importância central de Maria na espiritualidade carmelita. Essa evolução na devoção mariana não apenas fortaleceu a identidade da Ordem, mas também estabeleceu um legado duradouro que continua a ser celebrado pelos carmelitas até hoje.

John Baconthorpe (c. 1290–1348)

O carmelita inglês John Baconthorpe, conhecido como “Doctor Resolutus”, desempenhou um papel crucial na defesa e na articulação da identidade da Ordem Carmelita no século XIV. Seus escritos, que combinam filosofia, teologia e uma defesa polêmica da Ordem, refletem uma profunda reflexão sobre as raízes espirituais da tradição carmelita, especialmente em relação a Elias e Maria.

Baconthorpe escreveu quatro obras significativas que exploram essa conexão. O “Speculum de institutione ordinis pio veneratione Beatæ Mariæ” é notável por unificar as tradições de Elias e Maria, estabelecendo um elo entre o profeta do Antigo Testamento e a figura mariana. No “Tratado sobre a Regra da Ordem Carmelita”, ele argumenta que a Regra da Ordem reflete a vida de Maria, reforçando a ideia de que os carmelitas são chamados a viver segundo seus exemplos.

Em “Compendium historiarum et iurium” (Compêndio de histórias e direitos), Baconthorpe defende historicamente a Ordem, enquanto no “Laus religionis carmelitanæ” (Louvor à religião carmelita) ele exalta a Ordem em sua relação com Maria. Ele introduz novas ideias, como a veneração de Maria pelos antigos profetas no Carmelo e sugere que a beleza física do Monte Carmelo justifica uma devoção especial à Virgem Maria. A lenda apócrifa que menciona um anjo trazendo Maria ao Monte Carmelo e seu voto de virgindade durante uma contemplação ali se torna um elemento central em sua obra.

Baconthorpe também faz uma interpretação inovadora da nuvenzinha vista por Elias (1 Reis 18, 44) como símbolo de Maria, associando-a à restauração espiritual e à fertilidade após a seca. Essa visão se tornaria um símbolo importante para os carmelitas nas gerações seguintes, destacando o papel de Maria como mediadora das graças divinas.

A fusão das tradições sobre Elias e Maria proposta por Baconthorpe não apenas solidificou a identidade carmelita, mas também enfatizou a proteção da Ordem sob o título mariano. Sua obra contribuiu significativamente para o entendimento dos carmelitas como discípulos de Maria, uma ideia reconhecida pela Santa Sé. Essa interconexão entre as figuras bíblicas e os ideais espirituais da Ordem continua a ser um tema central na espiritualidade carmelita até os dias atuais.

Uma primeira síntese entre Elias e Maria: Philip Ribot

Philip Ribot, provincial catalão do final do século XIV, desempenhou um papel significativo na formação da espiritualidade carmelita, especialmente em relação à figura de Maria. Embora a autoria de algumas obras atribuídas a ele seja debatida, seu impacto no desenvolvimento da teologia mariana dentro da Ordem é inegável.

Um dos textos mais importantes associados a Ribot é a “Instituição dos Primeiros Monges”, que, embora não mencione Maria diretamente, estabelece um contexto para o ideal ascético e místico da Ordem. No entanto, o foco principal de Ribot em relação a Maria se encontra no Livro Seis de suas obras, onde ele explora o título da Ordem como “Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo”.

Ribot desenvolve uma interpretação espiritual da nuvenzinha vista por Elias (1 Reis 18, 44), associando-a simbolicamente a Maria. Ele argumenta que essa nuvem representa a pureza e a graça de Maria, surgindo do “mar amargo e salgado” que simboliza a humanidade pecadora. A partir dessa visão, Ribot apresenta quatro mistérios sobre a futura redenção da humanidade que Elias teria recebido por iluminação divina:

  1. O nascimento do Redentor de uma Virgem-Mãe Livre de Pecado.
  2. O tempo em que isso ocorreria.
  3. A decisão intencional da Mãe de permanecer Sempre Virgem.
  4. A fecundidade dessa Virgindade, prefigurada pela chuva que beneficiaria a humanidade.

Ribot também enfatiza a conexão entre Elias e Maria através do voto de virgindade. Ele sugere que tanto Elias quanto seus sucessores fizeram esse voto, estabelecendo uma empatia profunda com Maria, que é chamada de irmã pelos carmelitas. No entanto, essa relação não exclui sua maternidade; pelo contrário, Ribot argumenta que após a Encarnação, surgiu uma nova fraternidade baseada na maternidade de Maria.

A ideia de Maria como “Padroeira” dos carmelitas está intimamente ligada à sua virgindade e ao serviço devoto que os membros da Ordem prestam a ela. Ribot destaca que a virgindade voluntária foi iniciada pelos seguidores de Elias e depois exemplificada por Maria, reforçando assim sua importância como modelo para os carmelitas.

Além disso, Ribot utiliza uma falsa etimologia para “Carmelo”, interpretando-a como “conhecimento da circuncisão”, o que ele relaciona à busca pela virgindade dedicada a Deus. Essa abordagem reflete um esforço para integrar as tradições marianas com os ideais ascéticos da Ordem.

Em suma, Philip Ribot contribuiu significativamente para o entendimento mariano dentro da Ordem Carmelita ao sintetizar as tradições sobre Maria como Mãe, Padroeira e Irmã dos carmelitas. Sua meditação sobre o simbolismo da nuvenzinha não apenas enriqueceu a consciência mariana da Ordem, mas também solidificou o papel central de Maria na espiritualidade carmelita.

Síntese entre Elias e Maria: Arnold Bostius (1445–1499) 

Arnold Bostius, um humanista do final do século XV, representa uma fase significativa na evolução da mariologia carmelitana. Seu trabalho, especialmente o “De Patronatu et patrocinio B. Virg. Mariæ in dicatum sibi Carmeli Ordinem” (Sobre o patronato e a proteção da Bem-Aventurada Virgem Maria para com a Ordem do Carmo a ela dedicada), escrito em 1479, reflete uma síntese madura das tradições da Ordem e um aprofundamento no entendimento da relação entre Maria e a Ordem Carmelita.

Bostius recorre à tradição anterior e às Escrituras para explorar a figura de Maria, apresentando-a como Mãe de Deus, Mediadora, Imaculada Conceição, Santíssima Virgem, Assunta ao Céu, Rainha e Mãe de Misericórdia. Essas invocações são compartilhadas pela Ordem com toda a Igreja, destacando a universalidade da devoção mariana.

Um aspecto notável do pensamento de Bostius é sua ênfase na beleza de Maria. Ele descreve Maria como “Virgem de beleza incomparável”, ressaltando não apenas sua aparência física, mas também a plenitude de graça que ela representa. Essa ideia da beleza mariana já havia sido mencionada por Baconthorpe e se torna um tema recorrente na obra de Bostius. Ele utiliza uma linguagem rica e poética para exaltar as qualidades de Maria, afirmando que ela é “a mais resplandecente de todas as criaturas” e “a glória do Carmelo”.

Em relação à conexão entre Elias e Maria, Bostius apresenta uma visão inovadora ao afirmar que ambos compartilham doze privilégios concedidos pelo Espírito Santo. Esses privilégios incluem aspectos como a luz brilhante, o esplendor da virgindade e a exemplaridade de vida. No entanto, ele faz uma mudança importante na tradição ao enfatizar a primazia de Maria sobre Elias no contexto da Ordem Carmelita. Embora Elias seja reconhecido como o fundador e patriarca da vida religiosa carmelita, Bostius argumenta, que Elias, assume a virgindade inspirada pela futura Virgem Mãe.

Essa perspectiva leva Bostius a considerar Maria não apenas como uma figura secundária na fundação da Ordem, mas como uma “legisladora” que orienta Elias e seus seguidores. Ele sugere que Maria é a verdadeira instituidora do Carmelo devido à sua vivência exemplar e à sua posição única como Mãe de Deus.

A ideia de Elias e Maria como um casal fundador da Ordem Carmelita é uma contribuição significativa de Bostius que influenciou pensadores posteriores, como Lezana. Essa visão reforça a importância da figura feminina na espiritualidade carmelita e destaca o papel central de Maria na história da Ordem.

Em resumo, Arnold Bostius oferece uma síntese rica e profunda das tradições marianas dentro da Ordem Carmelita no final do século XV. Sua obra não apenas reafirma os ensinamentos sobre Maria compartilhados pela Igreja, mas também estabelece um novo entendimento sobre sua relação com Elias e seu papel fundamental na fundação da Ordem Carmelita.

Síntese mariana – Bostius

Arnold Bostius, em sua obra, oferece uma visão abrangente e profunda da relação entre Maria e a Ordem Carmelita, destacando a prioridade de Maria como figura central na fundação e na espiritualidade da Ordem. Ele argumenta que o exemplo e o destino de Maria foram fundamentais para inspirar Elias na criação da Ordem, considerando-a a verdadeira fundadora do Carmelo.

Bostius utiliza uma variedade de títulos para descrever Maria, incluindo Protetora, Mestra, Guia, Amiga, Irmã e Mãe. Ele enfatiza que Maria é a Padroeira do Carmelo, reconhecendo sua importância como intercessora e guia espiritual dos carmelitas. Em suas palavras, ela é “a renomada Mãe de Deus” e “a muito admirável Padroeira do Carmelo”, refletindo um profundo respeito e devoção.

A figura de Maria é apresentada por Bostius não apenas como uma entidade distante, mas como uma presença ativa e envolvente na vida dos carmelitas. Ele descreve Maria como a “Senhora” e “Mestra” do Carmelo, ressaltando que os carmelitas se alimentam de sua sabedoria e virtude. A famosa passagem em que ela instrui os servos a fazerem o que Jesus manda (João 2, 5) é citada para ilustrar seu papel como mestra perfeita.

Bostius também introduz uma visão mística sobre a relação entre Elias e Maria. Embora Elias seja tradicionalmente visto como o fundador da vida religiosa carmelita, Bostius defende que Maria ocupa um lugar de primazia. Ele sugere que Elias foi inspirado pela visão da futura Virgem ao fazer seu voto de virgindade, estabelecendo assim um vínculo profundo entre eles. Essa ideia culmina na noção de que os carmelitas são filhos tanto de Elias quanto de Maria, formando uma família espiritual onde Maria é tanto Mãe quanto Irmã.

A amizade entre Maria e os carmelitas é outro tema importante abordado por Bostius. Ele expressa que aqueles que têm a amizade de Maria são especialmente abençoados, pois essa amizade está ligada à amizade com Cristo. Essa perspectiva reforça a ideia do Carmelo como uma família unida sob a proteção e orientação materna de Maria.

Além disso, Bostius afirma que Maria pode ser considerada uma verdadeira carmelita, não apenas espiritualmente, mas também em um sentido literal. Ele destaca que ela viveu as virtudes carmelitanas em sua totalidade. Essa afirmação solidifica ainda mais o papel central de Maria na identidade da Ordem.

Por fim, Bostius antecipa temas que seriam explorados por escritores posteriores, como a Puríssima Virgem e o Escapulário. Esses elementos se tornariam partes essenciais da devoção carmelitana ao longo dos séculos.

Em resumo, Arnold Bostius representa um ponto culminante na reflexão sobre a mariologia dentro da Ordem Carmelita no final do século XV. Sua obra sintetiza tradições anteriores enquanto introduz novas ideias sobre o relacionamento entre Elias e Maria, estabelecendo um entendimento mais profundo da identidade mariana dos carmelitas e solidificando o papel central de Maria na espiritualidade da Ordem.

A Puríssima Virgem

A reflexão sobre a pureza de Maria, como mencionado, tem raízes profundas na tradição carmelitana e se desenvolve ao longo dos séculos. Desde os primeiros escritos da Ordem, a virgindade de Maria é apresentada não apenas como um aspecto de sua identidade, mas como um elemento central que a conecta com Elias e com a espiritualidade carmelita.

Jean de Cheminot, por volta de 1350, já reconhecia essa ligação entre a virgindade de Elias e a de Maria, exaltando o nome de Maria como “a flor da beleza e o título da virgindade”. Essa ideia é reforçada em textos como as “Instituições dos Primeiros Monges”, onde se traça um paralelo entre as vidas de Elias e Maria, enfatizando que ambas são exemplos de pureza e santidade.

A metáfora da nuvenzinha que surge do mar amargo é particularmente poderosa. Ela simboliza a pureza de Maria em contraste com a natureza humana marcada pelo pecado. Enquanto o mar representa a humanidade pecadora, a nuvem é vista como uma manifestação da graça divina — leve, doce e imune ao amargor do pecado. Essa imagem sugere que, embora Maria tenha nascido da mesma natureza humana que todos nós, ela foi preservada do pecado desde sua concepção.

Bostius destaca essa pureza em suas reflexões, afirmando que Maria “brilhava em sua grande pureza” e que nenhuma outra criatura poderia ser imaginada tão pura quanto ela. Ele convida os carmelitas a imitar tanto Elias quanto Maria em sua busca pela pureza interior e exterior. Essa ênfase na pureza não é apenas uma questão moral; é também uma questão espiritual que reflete o ideal carmelita de viver em comunhão com Deus.

No entanto, como observa, levará mais tempo até que uma reflexão plenamente desenvolvida sobre a pureza e a pureza de coração seja apresentada na tradição carmelitana. A evolução desse pensamento culminará em um entendimento mais profundo da Imaculada Conceição e da importância da pureza no caminho espiritual dos carmelitas.

Em resumo, a reflexão sobre a pureza de Maria está intrinsecamente ligada à identidade carmelita desde os primeiros momentos da Ordem. Através das metáforas e ensinamentos dos teólogos carmelitas ao longo dos séculos, essa ideia se torna um pilar fundamental na espiritualidade carmelita, preparando o terreno para desenvolvimentos futuros na mariologia e na compreensão da vida cristã.

O Escapulário

A questão do Escapulário do Carmo é, de fato, complexa e envolve uma rica história que se entrelaça com a devoção mariana e a identidade da Ordem Carmelita. A devoção ao Escapulário é frequentemente vista como um símbolo da proteção de Nossa Senhora do Monte Carmelo, mas sua origem e significado evoluíram ao longo dos séculos.

Como mencionado, as primeiras referências ao Escapulário aparecem nas Constituições de Londres de 1281, onde era tratado mais como um símbolo de obediência e compromisso com a vida monástica do que como um objeto de devoção mariana. O uso do Escapulário estava ligado à disciplina da Ordem, refletindo a necessidade de os monges manterem-se sempre em estado de prontidão e obediência. Essa perspectiva cristológica enfatizava a importância da vida comunitária e da submissão à autoridade dentro da Ordem.

A figura de São Simão Stock é central na narrativa sobre o Escapulário, mas sua historicidade é debatida. Embora seu nome apareça em listas posteriores e sua festa tenha sido estabelecida no século XV, não há evidências contemporâneas diretas que confirmem a visão atribuída a ele, na qual a Virgem Maria lhe teria apresentado o Escapulário como um privilégio para os membros da Ordem. A falta de referências anteriores à visão levanta questões sobre sua autenticidade histórica. No entanto, essa ausência não necessariamente desqualifica a experiência espiritual que muitos carmelitas associam ao Escapulário.

Do ponto de vista pastoral, pode ser mais frutífero focar no significado simbólico do Escapulário como uma expressão do zelo materno de Maria e uma forma de consagração à sua proteção. O Escapulário representa um compromisso com os valores carmelitanos — oração, contemplação e devoção — além de servir como um lembrete constante da presença protetora de Maria na vida dos fiéis.

O título mariano de “Padroeira” é particularmente apropriado para descrever o papel de Maria em relação ao Escapulário. Como Padroeira do Carmelo, ela não apenas intercede pelos carmelitas, mas também os convida a viver em conformidade com os ideais que ela representa: pureza, humildade e entrega total a Deus.

Em resumo, enquanto as origens históricas do Escapulário podem ser nebulosas e cercadas por debates acadêmicos, seu significado espiritual permanece claro para muitos devotos. Ele simboliza uma ligação íntima com Maria e um chamado à vivência dos valores carmelitanos. A reflexão sobre o Escapulário deve ser feita com sensibilidade tanto às tradições históricas quanto às experiências espirituais contemporâneas dos fiéis.

Lectio Divina

Os escritos medievais sobre Maria, como os de Arnold Bostius, refletem uma época em que a linguagem e as expressões de devoção eram profundamente enraizadas em uma cultura de reverência e exaltação. Termos como “divina” para descrever Maria podem parecer exagerados hoje, mas eles capturam o profundo amor e admiração que os carmelitas sentiam por ela.

A prática da lectio divina é uma maneira poderosa de nos conectarmos com esses textos antigos e extrairmos significado para nossas vidas atuais. Ao ler o trecho de Bostius, podemos refletir sobre três perguntas fundamentais:

O que o texto significa?

O texto destaca a relação especial entre Maria e os carmelitas. Ela é vista como Mãe, Irmã e Padroeira, alguém que escolheu os carmelitas para serem seus protegidos. A linguagem usada por Bostius enfatiza a proximidade e o cuidado maternal de Maria, bem como a devoção dos carmelitas a ela.

O que o texto significa para mim e para o mundo onde vivo?

Em um mundo moderno onde as relações espirituais podem parecer distantes ou abstratas, este texto nos lembra da importância das figuras espirituais em nossas vidas. Ele nos convida a considerar como podemos cultivar uma relação mais próxima com Maria ou outras figuras espirituais que ressoem conosco, buscando nelas inspiração e proteção.

Como respondo de forma orante à verdade que está sendo apresentada neste texto?

Podemos responder ao texto através da oração e da meditação, agradecendo pela proteção espiritual que sentimos em nossas vidas. Também podemos buscar maneiras práticas de honrar essa relação especial, talvez através de atos de serviço ou devoção que reflitam os valores marianos de humildade, generosidade e amor.

Bostius nos oferece uma visão rica da herança carmelitana, onde Maria é central na vida espiritual dos irmãos. Ele nos desafia a reconhecer e celebrar essa conexão em nossas próprias vidas, lembrando-nos do poder transformador da devoção sincera.

Ao refletirmos sobre esse texto, somos convidados a ver Maria não apenas como uma figura histórica ou teológica distante, mas como uma presença viva que continua a inspirar e guiar aqueles que buscam sua intercessão. Essa perspectiva pode enriquecer nossa própria jornada espiritual, ajudando-nos a encontrar significado e propósito em nossa fé cotidiana.

Conclusão

Encerramos este terceiro encontro com uma certeza incômoda — e necessária: se Maria é o coração do Carmelo, por que tantas vezes vivemos como se ela fosse apenas um detalhe bonito nas nossas práticas devocionais? Retomar as raízes da nossa espiritualidade mariana é mais do que estudar a história; é reencontrar o fio perdido da nossa própria vocação. O Carmelo sem Maria não é Carmelo — é só estrutura vazia, tradição sem alma. Voltar a ela é voltar ao essencial: ao silêncio fecundo, à escuta obediente, à coragem de confiar quando tudo parece escuro. Se queremos ser carmelitas de verdade, que seja com Maria à frente. Não como símbolo, mas como caminho. Até nosso póximo encontro por aqui.

Referência bibliográfica

O’DONNELL, Christopher. Uma Presença Amorosa: Maria e o Carmelo – Um Estudo da Herança Mariana na Ordem. Melbourne: Comunicações Carmelitanas, 2000.

Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância