A revolução Sinodal e as quatro causas de Aristóteles: uma análise filosófico-teológica

Introdução

A contemporaneidade eclesial se encontra imersa em um processo de transformação paradigmática, cuja expressão mais visível é o denominado “Sínodo sobre a Sinodalidade”. Com a publicação do documento Pathwaysfor the Implementation Phase of the Synod, sob a égide da Secretaria Geral do Sínodo e com decisiva influência do então Cardeal Robert Prevost — hoje Papa Leão XIV — adentra-se um estágio de natureza normativa. Esta nova etapa não visa apenas a escuta, mas a sistematização de um modelo eclesial alternativo. O presente artigo propõe uma análise dessa reconfiguração a partir das quatro causas aristotélicas: material, formal, eficiente e final, aplicadas ao escopo eclesiológico da chamada “Igreja Sinodal”.

A abordagem filosófica clássica, e em especial a estrutura causal de Aristóteles, oferece um instrumental heurístico de notável profundidade para o exame das realidades eclesiais. A sua aplicação permite discernir não apenas os elementos constitutivos desse novo paradigma, mas também identificar suas implicações teológicas e doutrinárias.

Embora se proclame uma abertura participativa e inclusiva, é possível entrever, por detrás do discurso institucional, uma reorientação substancial das categorias tradicionais que definem a Igreja. O uso da metodologia aristotélica, enraizada na metafísica do ser, contribui para iluminar com rigor conceitual os vetores de mudança e os princípios estruturantes desta nova configuração eclesial.

Não se trata de uma mera atualização pastoral, mas de um deslocamento ontológico e epistemológico na compreensão da Igreja enquanto corpus mysticum, portador da Revelação e mediador da graça. A filosofia perene, nesse sentido, não apenas ancora a análise, mas permite restituir a inteligibilidade de conceitos que, no atual contexto, correm o risco de serem dissolvidos em categorias sociológicas ou funcionais.

Este estudo, portanto, pretende oferecer uma contribuição crítica e propositiva, articulando a tradição filosófica e teológica com o debate atual, de modo a favorecer um discernimento mais profundo daquilo que se propõe como o futuro da Igreja sob a égide da sinodalidade.

1. Causa Material: a substância da Igreja Sinodal

Na tradição aristotélica, a causa material refere-se àquilo de que uma realidade é constituída. No contexto da Igreja Sinodal, essa materialidade parece ser composta por elementos como os fiéis organizados em conselhos, os organismos episcopais nacionais, e os relatos de escuta comunitária — todos apresentados como a base constitutiva da nova eclesialidade. Todavia, essa matéria difere substancialmente da compreensão clássica do corpus ecclesiæ.

Historicamente, a matéria da Igreja é entendida como o povo de Deus ordenado sacramentalmente e enraizado na fé apostólica. No novo paradigma, entretanto, esta matéria é interpretada predominantemente em termos horizontais e antropológicos, com ênfase em experiências subjetivas e contextuais. A autoridade doutrinal cede espaço ao dado experiencial.

Esse deslocamento material introduz uma instabilidade ontológica: a Igreja deixa de ser um sujeito teológico definido por Cristo e passa a configurar-se como uma entidade em permanente reinterpretação, conforme os dados da escuta e da participação local. A matéria torna-se fluida, quase informe.

A incorporação de métodos inspirados nas ciências sociais, com primazia da empatia e da representatividade, reforça essa mutação. O povo de Deus é reconstruído como um campo de afetos e desejos, mais do que como uma comunhão hierárquica fundada nos Sacramentos e no Magistério.

Assim, a causa material da Igreja Sinodal evidencia uma antropologização radical do eclesial, em que o sensus fidelium é desvinculado da tradição objetiva e passa a ser lido como manifestação do espírito do tempo, minando a estabilidade doutrinal e litúrgica.

2. Causa Formal: a Nova Configuração Eclesial

A causa formal é, para Aristóteles, o princípio que dá forma e inteligibilidade à matéria. Tradicionalmente, a forma da Igreja é Hierárquica, Sacramental e Trinitária, refletindo a sua origem Divina e sua constituição teândrica[1]. No modelo sinodal, entretanto, esta forma está sendo progressivamente substituída por uma estrutura de natureza relacional e horizontal[2].

A estrutura piramidal, expressão da Sucessão Apostólica e da Autoridade Magisterial, é relativizada em nome de um modelo circular[3], em que a escuta mútua e a corresponsabilidade se tornam os eixos principais. A forma sacramental é substituída por uma forma processual e participativa.

Essa reformulação formal não é neutra: ela redefine o próprio ser da Igreja. A sinodalidade não é mais um aspecto da vida eclesial, mas sua essência reconfigurada. Com isso, a Tradição Dogmática e Litúrgica se vê submetida a processos de discernimento pastoral e sociológico, resultando numa plasticidade perigosa da identidade eclesial.

Tal plasticidade se manifesta também na desinstitucionalização da doutrina, que se torna matéria de debate comunitário e adaptação cultural. A autoridade magisterial já não é recebida como expressão do depósito da fé, mas como mais uma voz entre outras no processo sinodal.

A causa formal da Igreja Sinodal, assim, parece emergir de categorias extraeclesiais de governança democrática e inclusão social[4]. Trata-se de uma forma transversa ao modelo católico tradicional, introduzindo elementos de ruptura que comprometem a continuidade teológica e sacramental da Igreja.

3. Causa Eficiente: os vetores da mudança

A causa eficiente, no pensamento aristotélico, corresponde ao agente responsável por provocar a transformação. No atual contexto sinodal, essa causa se expressa por uma multiplicidade de sujeitos e instituições que convergem para a implementação do novo paradigma. Entre eles, destaca-se a liderança do Papa Leão XIV, cuja ascensão ao pontificado representa uma transição de influência para normatividade.

O protagonismo do então Cardeal Prevost na redação das diretrizes sinodais revela uma intencionalidade estratégica na condução do processo. A concentração de poder decisório e executivo nas mãos de agentes comprometidos com a transformação institucional da Igreja indica que a sinodalidade é promovida não apenas como método, mas como projeto político-eclesial.

A esse núcleo decisório somam-se organizações eclesiais e paraeclesiais, muitas vezes influenciadas por categorias sociopolíticas externas à tradição católica. Conselhos episcopais, teólogos progressistas e ONGs de matriz globalista atuam como catalisadores de uma agenda que privilegia a diversidade, a sustentabilidade e a inclusão.

Essa miríade de agentes forma uma rede difusa de eficácia institucional que tende a enfraquecer a centralidade dogmática e sacramental da Igreja. A autoridade episcopal é descentralizada; o Magistério é mediado por comissões; o pastoreio é democratizado.

A causa eficiente da Igreja Sinodal, portanto, revela uma mudança no locus da autoridade eclesial, deslocando-a da sucessão apostólica para redes de influência organizacional e cultural, com implicações diretas na integridade da fé e na missão evangelizadora.

4. Causa Final: a Teleologia Sinodal

A causa final, no esquema aristotélico, é o fim último que dá sentido à existência e ao movimento de uma realidade. No discurso oficial, a finalidade da sinodalidade seria construir uma Igreja mais participativa, dialogal e missionária. Porém, os elementos empíricos disponíveis indicam uma redefinição sutil, porém profunda, dos objetivos próprios da Igreja.

A missão tradicional da Igreja — anunciar o Evangelho, santificar as almas e conduzi-las à salvação — parece ser substituída por metas de caráter sociocultural, como o protagonismo laical, a justiça socioambiental e o pluralismo inter-religioso. O foco desloca-se da transcendência para a relevância social.

Esse deslocamento escatológico tem consequências graves: a evangelização, entendida como anúncio da verdade revelada, cede lugar a uma escuta horizontal a uma abertura pastoral que relativiza o conteúdo da fé. A identidade da Igreja é dissolvida em projetos de inclusão e sustentabilidade.

A Liturgia, vértice da vida eclesial, é reconfigurada como performance comunitária, desvinculada de seu caráter sacrifical e teocêntrico. A doutrina é relativizada em função do contexto e das sensibilidades locais, submetendo-se a um discernimento pastoral contínuo.

A causa final da Igreja Sinodal, assim compreendida, configura uma verdadeira inversão teleológica: a finalidade sobrenatural é substituída por objetivos imanentes, funcionalizando a Igreja como instituição de mediação cultural, e não mais como Sacramento Universal de Salvação.

Considerações Finais

A análise das quatro causas aristotélicas aplicadas à reconfiguração sinodal da Igreja Católica revela um deslocamento substancial em sua identidade ontológica e teológica. Não se trata de ajustes metodológicos ou inovações pastorais, mas de uma transformação que atinge a essência da Igreja.

A matéria da Igreja é redefinida a partir de critérios antropológicos e contextuais. A forma sacramental e hierárquica é substituída por estruturas horizontais e mutáveis. Os agentes da mudança operam em nome de uma racionalidade organizacional que relativiza a Revelação. E a finalidade última da Igreja é reconfigurada de modo funcional e imanentista[5].

Frente a este cenário, impõe-se um discernimento rigoroso. A tradição filosófica e teológica da Igreja fornece as categorias necessárias para avaliar a profundidade da crise e os riscos implicados na adoção de um modelo eclesial desconectado de sua fundação divina.

Este artigo pretende ser uma contribuição ao esforço coletivo de resistência teológica e fidelidade eclesial. O verdadeiro aggiornamento não é adaptação irrefletida ao espírito do tempo, mas renovação enraizada na verdade perene da fé cristã.

Cabe, portanto, aos Bispos, teólogos e fiéis conscientes, exercerem vigilância, resistência e testemunho, guardando o Depósito da Fé diante das tentações de uma eclesiologia funcionalista e secularizada.


Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância


Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2000.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Carta aos Bispos sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão (1992).

SECRETARIA GERAL DO SÍNODO. Pathways for the Implementation Phase of the Synod. Vaticano, 2025.

SERTILLANGES, Antonin-Dalmace. A vida intelectual: seu espírito, condições, métodos. São Paulo: Quadrante, 2001.

 


[1] Constituição teândrica designa a natureza da Igreja enquanto realidade simultaneamente divina e humana, analogamente à união hipostática em Cristo, que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Essa expressão ressalta que a Igreja não é meramente uma instituição sociológica ou histórica, mas possui uma dimensão sobrenatural, sendo ao mesmo tempo obra de Deus e mediada por sujeitos humanos. O termo “teândrico” (do grego theos = Deus, e ánthropos = homem) foi desenvolvido com mais profundidade pelos Padres Orientais, especialmente por Máximo, o Confessor, para descrever a cooperação inseparável entre a graça divina e a liberdade humana na Economia da Salvação, princípio esse que também estrutura a ontologia eclesial. Aplicado à Igreja, tal conceito sustenta que sua estrutura visível e histórica está sempre subordinada e ordenada à sua origem transcendente e sacramental.

[2] Natureza relacional e horizontal refere-se a uma compreensão eclesiológica na qual as relações entre os membros da Igreja não são estruturadas primordialmente por uma hierarquia sagrada, mas por uma lógica de reciprocidade, escuta mútua e corresponsabilidade. Tal abordagem enfatiza a comunhão entre os batizados como sujeitos ativos da missão eclesial, privilegiando formas participativas de deliberação e discernimento. No modelo sinodal, essa ênfase frequentemente contrasta com a estrutura vertical e sacramental tradicional da Igreja, apontando para uma eclesiogênese mais comunitária e menos clericalizada

[3] Modelo circular refere-se a uma proposta organizacional em que a autoridade e a tomada de decisões não seguem uma lógica vertical ou hierárquica, mas se distribuem em uma rede de interlocução horizontal e dialógica entre todos os membros do corpo eclesial. Inspirado em paradigmas comunicacionais contemporâneos e teorias participativas de governança, esse modelo busca substituir a estrutura piramidal tradicional por um dinamismo de escuta mútua e corresponsabilidade. No contexto da sinodalidade, o termo expressa a intenção de relativizar a centralidade do Magistério hierárquico, priorizando o consenso comunitário como critério normativo.

[4] As categorias extraeclesiais de governança democrática e inclusão social referem-se à importação, para dentro da estrutura eclesial, de modelos oriundos das ciências sociais, do pensamento político moderno e das teorias participativas contemporâneas. Tais categorias, embora eficazes em contextos seculares, podem conflitar com a lógica sacramental, hierárquica e revelada da constituição da Igreja. Ao priorizarem processos horizontais de deliberação e representatividade, essas abordagens tendem a deslocar o fundamento teológico da autoridade eclesial, reinterpretando-o sob chaves antropocêntricas e sociológicas.

[5] A expressão modo funcional e imanentista refere-se a uma concepção da Igreja em que sua identidade e missão são compreendidas prioritariamente a partir de suas funções sociais, organizacionais e psicológicas, desvinculando-se de sua origem transcendente e de sua natureza sacramental. O termo “funcional” indica uma redução da Igreja a seus mecanismos operacionais e administrativos, enquanto “imanentista” aponta para a exclusão ou marginalização de sua dimensão sobrenatural, espiritual e escatológica. Tal leitura promove uma eclesiologia centrada no desempenho institucional, em detrimento da vocação soteriológica e mística da Igreja.