A Aurora Mariana do Carmelo: História, Títulos e Liturgia até 1324
Dando continuidade ao caminho de reflexão sobre a espiritualidade mariana no Carmelo, disponho um resumo do segundo encontro de formação dada em nossa Ordem Terceira do Carmo — Fraternidade da Campanha, o texto propõe uma imersão nas origens históricas do culto de veneração à Nossa Senhora entre os carmelitas. Desde os primeiros séculos da Ordem, a figura de Maria foi se tornando cada vez mais central, até alcançar um lugar único na identidade carmelitana.
Aqui, exploramos os títulos antigos atribuídos à Virgem pelos primeiros carmelitas, os documentos que testemunham esse amor filial, e a consolidação litúrgica que culminou com o reconhecimento oficial de Maria como Padroeira e Senhora do Carmelo, até o ano de 1324.
Trata-se de uma “aurora mariana”, cujos primeiros raios de luz prepararam o esplendor da devoção à Virgem do Carmo que conhecemos hoje. Que este mergulho na história nos ajude a amar mais profundamente nossa Mãe e Rainha, e a renovar, como filhos, nossa consagração total ao seu serviço.
Das Origens até 1324
As primeiras fases da Ordem
Carmelita, há pouca documentação disponível, especialmente sobre Maria. No
entanto, as referências existentes são valiosas. Apesar disso, os carmelitas
surgiram em um contexto medieval já marcado por forte devoção mariana, o que
influenciou a espiritualidade da Ordem. Desde esse início, já se percebem os
fundamentos da devoção à Proteção de Maria e da inclusão de seu nome no título
da Ordem.
O Oratório no Monte Carmelo
A Regra de Vida dada por Alberto
de Jerusalém não mencionava explicitamente a Virgem Maria, mas determinava a
presença de um oratório entre as celas dos eremitas, onde missas seriam
celebradas. Por volta de 1231, esse oratório passou a ser dedicado a Nossa
Senhora, e essa devoção permaneceu visível até o século XV. A escolha de Maria
como padroeira não foi por acaso, mas refletia o desejo dos carmelitas de tê-la
como presença e protetora da comunidade, algo comum à mentalidade da época. Nos
séculos seguintes, esse vínculo com o oratório mariano seria relembrado, às
vezes com interpretações exageradas.
Os Irmãos e as Irmãs
Os nomes das Ordens carregam significados importantes. No caso dos Carmelitas, esse
significado é ainda mais relevante por causa das questões envolvendo sua
identidade e origem. Por isso, é importante explorar os títulos da Ordem,
inclusive os das Irmãs Carmelitas, mesmo que tenham surgido em séculos
posteriores.
Os Irmãos
O texto descreve a evolução do
nome e dos títulos da Ordem Carmelita ao longo do tempo. Inicialmente, na Regra
de Alberto, os membros eram chamados de “eremitas” e também frequentemente de
“irmãos”. Ao chegarem à Europa, eram conhecidos por diversos nomes. O primeiro
documento papal (1226) refere-se a eles como “prior e irmãos eremitas do Monte
Carmelo”. O uso de um título mariano aparece com clareza em 1252, em uma bula
que menciona os “eremitas de Santa Maria do Monte Carmelo”.
Durante o século XIII, era comum
usar nomes marianos em instituições religiosas, e documentos da época
referem-se frequentemente à Ordem como “Ordem de Santa Maria do Monte Carmelo”
ou variações semelhantes. Uma menção importante ocorre em 1263, quando o Papa
Urbano IV reconhece Maria como padroeira do Carmelo.
O primeiro documento interno da
Ordem que afirma Maria como padroeira são as Constituições de 1294. Essa
devoção foi profundamente refletida nos séculos XIV e XV, quando os papas
passaram a se referir à Ordem como “distinguida pelo nome da Bem-aventurada
Virgem Maria do Monte Carmelo”. Nessa época, o título foi ampliado com
expressões como “Santa Mãe de Deus” e “Sempre Virgem”, chegando à forma: “Ordem
dos Irmãos da Santa Mãe de Deus Maria do Monte Carmelo”, e depois, sob o papa
Sixto IV, “Ordem da muito Gloriosa Mãe de Deus, a Sempre Virgem Maria do Monte
Carmelo”.
As Monjas e as Irmãs
A evolução dos ramos femininos da
Ordem Carmelita mostra como a linguagem mariana também esteve presente nesse
processo. À medida que as fraternidades femininas se transformavam em
comunidades religiosas, mantinha-se a referência à Virgem Maria. A Regra de
1488, por exemplo, menciona que as irmãs não-professas eram admitidas na “Fraternidade
da Ordem dos Irmãos da Bem-aventurada Maria do Monte Carmelo” e recebiam o manto com referência à Mãe de Deus.
Já em 1450, em Florença, mulheres
associadas à Ordem, mesmo vivendo em casa, eram chamadas de “Irmãs da Virgem
Maria” e usavam o manto branco em honra à Gloriosa Virgem. Ao longo do tempo,
os documentos das comunidades femininas adotaram títulos variados, todos
marcados pela devoção mariana. As de Parma (até 1481) tinham o título de
“Estatutos das Irmãs Religiosas da Ordem da Muito Bem-aventurada Mãe de Deus do
Monte Carmelo”. Em Bolonha, em 1594, o título era “Constituição e Regra das
Irmãs Carmelitas”. E em 1476, um motu proprio papal já se referia às monjas
como pertencentes à Ordem da “Muito Gloriosa Mãe de Deus, a Sempre Virgem Maria
do Monte Carmelo”.
Carmelitas
Apesar do nome “carmelitas” ter
se tornado popular em toda a Ordem, o uso oficial do título completo — “Irmãos
da Ordem da Muito Bem-aventurada Sempre Virgem Maria do Monte Carmelo” — foi
reforçado pelo Capítulo Geral de 1680 e mantido nas Constituições de 1930.
Nesses documentos, o termo “Carmelitas” foi substituído pela forma mais solene
e mariana. O texto também sugere que refletir sobre o nome completo da Ordem
ajuda a compreender a relação profunda com Maria, vista não apenas como
padroeira, mas também como Irmã espiritual dos carmelitas.
Silêncios Estranhos
Embora o caráter mariano da Ordem
Carmelita no século XIII seja evidente, há lacunas notáveis. A Regra original
não menciona Maria, e até mesmo textos importantes, como o Flechas de Fogo
do Prior Geral Nicolau o Francês, fazem apenas breves referências a ela. Um
exemplo ainda mais marcante é a Rubrica prima das Constituições de 1281,
que narra a origem da Ordem a partir do profeta Elias, mas omite completamente
Maria.
Somente a partir das
Constituições de 1324 a Rubrica prima passa a incluir Maria, explicando
que, após a Encarnação, os sucessores de Elias construíram uma igreja em sua
honra no Monte Carmelo e, por privilégio apostólico, passaram a ser chamados de
Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo. Essa inserção
representa uma evolução na construção da identidade mariana da Ordem.
Além disso, o texto destaca que
não há nenhuma menção ao Escapulário nem à visão de São Simão Stock em
documentos do século XIII, indicando que essas tradições associadas à Ordem
surgiram ou se consolidaram mais tarde.
Observâncias
Para compreender a vivência
mariana da Ordem Carmelita em seus primeiros séculos, é essencial ir além dos
textos oficiais e observar como os irmãos viviam, especialmente na liturgia.
Dois conjuntos de fontes são fundamentais para esse estudo: as primeiras
Constituições (Londres – 1281, Bordeaux – 1294, e Barcelona – 1324) e os
antigos Ordinários, que orientavam a celebração litúrgica.
O Ordinário mais antigo, de 1263,
já apresenta muitos elementos marianos, embora em sua maioria comuns a outras
ordens da época. Em 1294, o Capítulo Geral de Bordeaux solicitou uma revisão
desse texto. A versão revisada por Sibert de Beka em 1312 não trouxe mudanças
substanciais, mas introduziu alguns sinais adicionais de devoção mariana,
evidenciando um crescimento gradual dessa espiritualidade na prática litúrgica
da Ordem.
Liturgia
As celebrações litúrgicas revelam
a profunda dimensão mariana da Ordem Carmelita em seus primeiros séculos. Desde
cedo, havia uma comemoração diária de Maria, e nos dias sem festas específicas,
celebrava-se uma missa em sua honra. Embora nem todas as orações fossem
dirigidas diretamente a Maria, sua presença era constante na liturgia.
Por volta de 1324, quatro festas
marianas principais eram celebradas: Purificação, Anunciação, Assunção e
Nascimento de Maria — sendo que, com exceção da Anunciação, todas envolviam a
recepção da Comunhão. Aos sábados, a missa e o ofício da Bem-aventurada Virgem
eram praticados com regularidade. As Constituições de 1324 estabeleceram que a
Missa de Maria deveria ser cantada antes da Hora Prima em todos os conventos.
O ofício mariano era central:
começava com a Ave Maria (em forma reduzida), incluía a Salve Rainha nas
Completas, e menções a Maria nas Laudes e Vésperas. Havia também gestos de
veneração específicos: reverência ao nome de Maria, genuflexão em determinados
hinos, e uso de velas durante missas e cânticos marianos, conforme o Ordinário
de Sibert de Beka.
Além disso, as Constituições de
1294 indicavam que entre 50 missas destinadas a benfeitores e doentes, 10
deveriam ser celebradas em honra à Bem-aventurada Virgem, refletindo sua
importância espiritual dentro da vida da Ordem. Esses rituais e práticas litúrgicas
mostram como a devoção a Maria era integrada no cotidiano dos carmelitas.
Orações e Hinos
Já no século XIII, a
espiritualidade mariana da Ordem Carmelita se manifestava também por meio das
orações litúrgicas. As duas mais antigas orações marianas da Ordem são “Concede”
e “Protege”. A primeira, usada desde 1281 nas cerimônias de profissão,
pedia saúde e salvação pela intercessão de Maria. Embora comum no rito latino,
ela desapareceu das Constituições após 1294.
A oração “Protege”, que a
substituiu a partir de 1324, enfatiza ainda mais o papel de Maria como Protetora.
Essa oração ganhou grande importância, sendo repetida várias vezes em
celebrações e utilizada em diversas ocasiões oficiais da Ordem: profissões,
capítulos, jubileus, visitas, eleições, entre outros.
Também aparece pela primeira vez
em 1294 o versículo “Rogai por nós, Santa Mãe de Deus”, que se tornaria
frequente nos mesmos contextos das orações citadas.
As Constituições de 1324
reafirmam o uso do Ordinário de Sibert de Beka, acrescentando que, antes
do Fidelium, o Salve Regina e a oração Protege deveriam
ser incluídos em todas as horas canônicas e missas. O Capítulo Geral de 1342
reforça essa tradição, determinando que, após a ação de graças, se incluíssem
as invocações Ave Regina Cœlorum,
Ora pro nobis, e Protege, aprofundando ainda mais a presença de
Maria na liturgia diária da Ordem.
Práticas
Várias práticas litúrgicas e
espirituais que refletem a profunda devoção mariana na Ordem Carmelita. Desde o
início, havia atos de reverência em relação a Maria, como a inclinação da
cabeça durante a Missa sempre que os nomes de Jesus e Maria eram mencionados.
Nas primeiras Constituições, esse gesto de inclinação era estendido a todas as
orações a partir de 1294 e deveria ser feito com a cabeça descoberta, tocando o
joelho com a mão. Em 1324, as penalidades para quem omitia esse ato de
reverência foram tornadas mais severas.
Além disso, havia genuflexões
específicas no início do hino Ave maris stella e na Salve Rainha
durante as Completas. Também havia penalidades para aqueles que desonrassem os
nomes de Jesus ou Maria. Essas práticas revelam uma forte consciência mariana,
se não uma espiritualidade mariana integral.
Nas cerimônias de recepção dos
noviços e de profissão, Maria é sempre mencionada. As Constituições de 1281
indicam que a profissão era feita em nome de Deus, Maria e do Prior Geral, um
rito que persiste até hoje. As orações para a recepção dos noviços de 1324
destacam Maria como a principal protetora da Ordem, refletindo o profundo
vínculo da Ordem com ela.
Esse tipo de devoção mariana não
era único à Ordem Carmelita, sendo encontrado também em outras ordens
medievais, embora com ênfase distinta, como foi o caso dos dominicanos.
Conclusão
No primeiro século após a
obtenção da Regra de Vida, a Ordem Carmelita estabeleceu uma estreita
associação com Maria, apesar da falta de documentação detalhada. Essa relação
pode ser resumida pela ideia de que a Ordem pertence a Maria, com a devoção a
ela sendo uma característica central da identidade carmelitana. Ao longo do
século seguinte, essa conexão com Maria foi aprofundada, especialmente durante
as controvérsias, quando se desenvolveu uma narrativa histórica que ligava
Elias, Maria e os “filhos” do profeta, criando um mito de continuidade
histórica da Ordem.
A reflexão sobre o carisma
mariano da Ordem retornou à suposição original de que a Ordem existe para Maria
e que seu serviço é, como o de Cristo, uma razão fundamental para sua
existência. Esse princípio foi consagrado pelo aforisma “Totus marianus est
Carmelus” (O Carmelo é totalmente mariano), popularizado especialmente por
A. Bostius no século XV, e que se tornou uma expressão tradicional do vínculo
indissolúvel entre a Ordem e Maria.
Lectio Divina
A Lectio Divina é uma prática espiritual profunda que nos convida a mergulhar nas palavras de um texto sagrado e refletir sobre sua mensagem e relevância em nossas vidas. Quando aplicamos essa prática ao Ave maris stella, hino mariano antigo, encontramos várias maneiras de aprofundar nossa relação com Deus, com a Igreja e com nossa própria jornada espiritual. Abaixo estão as perguntas para a reflexão e o processo de Lectio Divina, considerando esse hino.
1. O que o texto significa para nós e o que
teria significado para os antigos carmelitas que o adotaram da Igreja medieval?
· Para os antigos carmelitas, o Ave maris
stella representava um pedido de proteção e intercessão da Virgem
Maria, a "estrela do mar", como guia em meio às tempestades da vida.
Para nós, pode significar um convite à confiança na proteção maternal de Maria
e à busca por sua intercessão em nossos desafios diários.
2. O que ele significa para mim/para nós em
nossa jornada espiritual, em nossa situação sócio-econômica e política?
· O hino, que clama pela ajuda de Maria como
estrela que guia os navegantes, pode se aplicar à nossa busca de direção em
tempos de incerteza ou crises, seja espiritualmente, socialmente ou
politicamente. Ele nos lembra da constante necessidade de orientação e
esperança, especialmente quando enfrentamos dificuldades em um mundo
turbulento.
3. Com que orações espontâneas podemos responder
a este hino?
· Podemos orar espontaneamente pedindo à Virgem
Maria que interceda por nós, que nos guie em nossa jornada, que nos ajude a
navegar pelas dificuldades da vida e que nos conduza a um maior entendimento do
amor de Deus. Uma oração pode ser: "Maria, estrela do mar, guia-nos em
nossa caminhada, protege-nos das tempestades da vida e leva-nos sempre mais
perto do teu Filho."
4. O que podemos contemplar com a beleza de suas
palavras e com a profundidade de sua mensagem?
· Podemos contemplar a beleza da simplicidade e
profundidade do hino, que nos lembra que Maria, como "estrela do
mar", é uma luz e guia que nos leva ao Cristo. A imagem de Maria como uma
estrela que ilumina nosso caminho traz uma sensação de paz, esperança e
proteção divinas, inspirando-nos a confiar na sua intercessão.
5. Que ação ele nos inspira?
· Este hino pode nos inspirar a viver mais
plenamente a confiança em Maria e em sua intercessão. Podemos agir com mais fé
e coragem diante dos desafios, confiando que Maria está ao nosso lado. A ação
também pode envolver a dedicação ao serviço ao próximo, sendo luz para os
outros como Maria é para nós.
Ao praticar a Lectio Divina com o Ave maris stella, somos convidados a entrar em um diálogo com Deus e com a tradição da Igreja, deixando que a beleza do hino transforme nosso coração, nossa oração e nossas ações.
Continuaremos no próximo artigo.
Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância
Referência bibliográfica
O’DONNELL, Christopher. Uma Presença Amorosa: Maria e o Carmelo – Um Estudo da Herança Mariana na Ordem. Melbourne: Comunicações Carmelitanas, 2000.
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