Dispone domui tuae, quia morieris tu et non vives –
“Dispõe de tua casa, porque morrerás e não viverás” (Is 38, 1)
Sumário. A experiência prova que
morrem felizmente os que, no último momento, estão já mortos para o mundo, isto
é, desligados dos bens de que nos deve separar a morte. É, pois, preciso que desde
já aceitemos a privação dos bens, a separação dos parentes e de todas as coisas
da terra, lembrando-nos que, se não o fizermos voluntariamente agora,
necessariamente teremos de o fazer na morte, mas com risco da salvação eterna.
Quem ainda não escolheu um estado de vida, tome aquele que houvera querido
escolher na hora da morte.
I. Diz Santo Ambrósio que morrem felizmente os
que, no tempo da sua morte, estão já mortos para o mundo, isto é, desligados
daqueles bens de que forçosamente os deve separar a morte. Mister, pois, se
torna que desde já aceitemos a privação dos bens, a separação dos parentes e de
todas as coisas da terra. Se não fizermos isto voluntariamente durante a vida,
seremos forçados a fazê-lo na morte, mas então com extrema dor e com risco da
salvação eterna.
A este propósito observa Santo Agostinho que, para morrer em
paz, é vantajosíssimo pormos em ordem durante a vida os negócios temporais,
fazendo desde já a disposição dos bens que é preciso deixar, a fim de não
termos de nos ocupar então senão da nossa união com Deus. — Naquela hora convém
que só se fale em Deus e no paraíso. Os últimos momentos da vida são
demasiadamente preciosos para serem desperdiçados em pensamentos terrestres. É
na morte que se acaba a coroa dos escolhidos, porque é então que se recolhe a
maior soma de merecimentos, aceitando os sofrimentos e a morte com resignação e
amor.
Semelhantes sentimentos, porém, não os poderá ter na morte
quem não os tiver excitado durante a vida. Com este fim, pessoas devotas têm
por hábito renovarem todos os meses a protestação da boa morte com os atos
cristãos de fé, esperança e caridade, com a confissão e comunhão, como se já
estivessem no leito de morte, próximas a saírem deste mundo. Oh, como esta
prática nos ajudará a caminharmos bem, a nos desprendermos do mundo e morrermos
de boa morte! Beatus ille servus, quem, cum venerit dominus eius,
inveniet sic facientem (1) — “Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor,
quando vier, encontre a fazer isto.”
Quem espera a toda a hora a morte, ainda que esta venha
subitamente, não pode deixar de morrer bem. Ao contrário, o que se não faz na
vida, é dificílimo fazê-lo na morte. — A grande serva de Deus, irmã Catarina de
Santo Alberto, da ordem de Santa Teresa, estando para morrer, gemia e dizia:
Minhas irmãs, não é o medo da morte que me faz gemer, porque há vinte e cinco
anos que a estou esperando, gemo por ver tantas pessoas iludidas, que vivem no
pecado, e esperam, para se reconciliarem com Deus à hora da morte, em que eu
com dificuldade posso pronunciar o nome de Jesus.
II. Examina-te, meu irmão, e vê se tens o
coração apegado a alguma coisa terrestre: a alguma pessoa, a algum posto, a
alguma casa, a alguma riqueza, a alguma sociedade, a alguns divertimentos, e
lembra-te que não és eterno. Tudo terás de deixar um dia, e talvez em breve.
Porque queres então ficar agarrado a esses objetos com risco de morreres cheio
de inquietações? Oferece desde já tudo a Deus, estando disposto a privar-te de
tudo, quando Lhe agradar.
Se não tens ainda escolhido o estado de vida, toma o que na
hora da morte quiseras ter escolhido e que te deixará morrer mais contente. Se
já o escolheste, faze agora o que então quiseras ter feito no teu estado. Faze
como se cada dia fosse o último de tua vida e cada ação a última que praticas:
a última oração, a última confissão, a última comunhão. Imagina, numa palavra,
a cada hora que já estás no leito da morte, ouvindo a intimação: proficiscere
de hoc mundo — “parte deste mundo”, e por isso repete muitas vezes a
protestação para a boa morte, dizendo:
Ó meu Deus, só poucas horas me restam; nelas vos quero amar
quanto possa na vida presente, para mais Vos amar na outra. Pouco tenho que Vos
oferecer; ofereço-Vos os meus padecimentos e o sacrifício da minha vida, em
união com o sacrifício que Jesus Cristo Vos ofereceu por mim na cruz. Senhor,
as penas que sofro são poucas e leves em comparação com as que mereci; tais
como são, aceito-as em testemunho do amor que Vos tenho. Resigno-me a todos os
castigos que me queirais infligir nesta vida e na outra, contanto que Vos possa
amar na eternidade. Castiga-me tanto quanto Vos aprouver, mas não me priveis do
vosso amor. Sei que não merecia mais amar-Vos, por ter tantas vezes desprezado
o vosso amor; mas Vós não podeis repelir uma alma arrependida. Pesa-me, ó meu
supremo Bem, de Vos haver ofendido. Amo-vos de todo o coração e em Vós ponho
toda a minha confiança. A vossa morte, ó Redentor meu, é a minha esperança.
Deposito a minha alma em vossas mãos chagadas.
— Maria, minha querida Mãe, socorrei-me nesse grande
momento. Desde já vos entrego o meu espírito: dizei a vosso Filho que se apiede
de mim. A vós me recomendo, livrai-me do inferno.
Referências:
(1) Mt 24, 46
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias
e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa
Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 318-321)
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