Bem-aventurado o que não quer outra coisa senão a Deus


Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum coelorum – “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5, 3)

Sumário. Persuadamo-nos bem de que só Deus pode contentar-nos; mas não contenta senão àqueles que são pobres de espírito, isso é, de desejos terrestres, e nada querem fora dele. Se, portanto, nós também queremos achar a verdadeira felicidade, desfaçamo-nos de todo o afeto à terra, entreguemo-nos a Deus sem reserva e digamos frequentes vezes: Senhor, disponde de mim, e de tudo que é meu, segundo o vosso agrado; eu não quero senão o que Vós quereis.

I. Pelos pobres de espírito entendem-se aqueles que são pobres de desejos terrestres e nada querem fora de Deus. Estes são pobres nos desejos, mas não na realidade, porque desde a presente vida vivem contentes. Por isso o Senhor não diz: Deles será, mas: deles é o reino dos céus: Ipsorum est regnum coelorum; porquanto já nesta terra são ricos em bens espirituais que de Deus recebem. Apesar de pobres em bens temporais, vivem contentes em seu estado, em contraste com os ricos em desejos terrestres, que na vida presente sempre são pobres e vivem descontentes, por grandes que sejam as suas riquezas. ― Jesus Cristo, como diz o Apóstolo (1), quis ser pobre, para com o seu exemplo nos ensinar o desprezo dos bens terrestres e desta forma nos tornar ricos em bens celestes, que são imensamente mais preciosos e de duração eterna. Eis porque declara que, quem não renuncia a tudo quanto possui na terra com certo apego, não pode ser seu verdadeiro discípulo (2).

Persuadamo-nos de que só Deus faz contentes, mas não faz plenamente contentes senão aquelas almas que o amam de todo o coração. Que lugar pode o amor de Deus achar num coração cheio de coisas terrestres? Muitas almas se queixam de que na meditação, na comunhão, nos outros exercícios de devoção não acham a Deus. Santa Teresa lhes diz: Desprende o teu coração das criaturas e acharás Deus.

Desfaçamo-nos, portanto, de todo o afeto terrestre e especialmente da vontade própria; demos a Deus toda a nossa vontade sem reserva e digamos-Lhe: Senhor, disponde de mim e de tudo que é meu, segundo o vosso agrado. Não quero senão o que Vós quereis, e sei que não quereis senão o que é melhor para mim. Fazei que eu Vos ame sempre e nada mais desejo.

II. O único meio para nos desprendermos das criaturas é a aquisição de um grande amor a Deus. Em quanto o amor divino não ficar sendo senhor de toda a nossa vontade, nunca chegaremos a ser santos. O meio, pois, para adquirirmos esse amor divino predominante é a santa oração. Roguemos, portanto, sempre a Deus que nos dê o seu amor e assim nos veremos desprendidos de todas as coisas criadas. ― O amor divino é um roubador que santamente nos tira todos os afetos terrestres. Como não há força capaz de resistir à morte, assim tampouco há impedimento, por insuperável que se nos afigure, que possa resistir ao amor divino. O amor vence tudo. Pelo seu amor a Deus os santos mártires venceram os tormentos mais atrozes e a morte mais dolorosa.

Por outro lado, se uma alma não chega a dar-se toda a Deus, acha-se sempre em perigo de abandoná-lo e perder-se; como, ao contrário, quem deveras se deu todo a Deus, pode estar certo de que não mais o abandonará, porque o Senhor é liberal e fiel para com o que se Lhe dá sem reserva. Donde vem que algumas pessoas, que de primeiro levavam vida santa, vieram depois a cair tão profundamente, que deixaram bem pouca esperança acerca de sua salvação? Donde vem isso? Vem, respondo, de que não se tinham dado inteiramente a Deus; a sua própria queda é o sinal certo disso.

Meu Deus e meu verdadeiro amador: não permitais que minha alma, criada para Vos amar, ame qualquer coisa senão a Vós e não seja toda vossa, visto que me resgatastes com o vosso sangue. Ah, Jesus meu, como será possível que depois de ter conhecido o vosso amor para comigo, eu ame alguma coisa fora de Vós? Peço-Vos, que me queirais atrair sempre mais ao íntimo do vosso Coração. Fazei com que me esqueça de tudo, a fim de não buscar nem desejar senão o vosso amor. Jesus meu, em Vós confio.

― Ó Maria, Mãe de Deus, em vós pus as minhas esperanças. Desprendei-me de tudo que não seja Deus, para que Ele seja o único objeto de todo o meu amor e de minha felicidade eterna.

Referências: 

(1) 1Cor 8, 9 
(2) Lc 14, 33


(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 300-303)

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