Iustorum animae in manu Dei sunt, et non tanget illos
tormentum mortis – “As almas dos justos estão na mão de Deus, e não os
tocará o tormento da morte” (Sb 3, 1)
Sumário. É assim: os tormentos, que na
morte afligem os pecadores, não afligem os santos, porque já antes desse tempo
deixaram pelo afeto os bens terrestres, consideraram as honras como fumo e
vaidade e viveram desapegados dos parentes, amando-os só em Deus. D’outra
parte, que felicidade morrer entregando-se nos braços de Jesus Cristo, que quis
sofrer uma morte tão amarga, a fim de nos obter uma morte doce e cheia de
consolação! Irmão meu, se na primeira noite a morte te colhesse, qual seria a
tua morte, a do justo ou a do pecador?
I. É assim: os tormentos que na morte afligem os
pecadores, não afligem os santos: Non tanget illos tormentum mortis ― “Não
os tocará o tormento da morte”. Os santos não se abalam com esse
Proficiscere, anima ― “Parte, ó alma”, que tanto assusta os mundanos. Os
santos não se afligem com o terem de deixar os bens da terra, porque nunca lhes
tiveram o coração ligado. Deus é o Senhor do meu coração, diziam eles sempre, a
minha porção é Deus para sempre ― Deus cordis mei et pars mea Deus in
aeternum (1). Sois felizes, escrevia o Apóstolo a seus discípulos que pela
causa de Jesus Cristo tinham sido despojados de seus bens, sois felizes, porque
suportastes com alegria a rapina dos vossos bens, sabendo que tender um cabedal
melhor e permanente: Cognoscentes vos habere meliorem et manentem
substantiam (2).
Os santos não se afligem por deixarem as honras, porque
desde muito as desprezaram e tiveram na conta do que efetivamente são, fumo e
vaidade. Só estimaram a honra de amarem a Deus e de serem por Ele amados. Nem
se afligem por deixarem os parentes, porque só os amaram em Deus; morrendo,
recomendam-nos ao Pai celeste que os ama mais do que eles o podiam, e como
esperam salvar-se, pensam que o melhor lhes poderão valer na pátria celestial
do que ficando na terra. Em suma, o que disseram durante toda a vida: Deus
meus et omnia ― “Meu Deus e meu tudo”, repetem-no com mais consolação e
ternura no momento da morte.
Quem morre no amor de Deus não se inquieta com as dores que
acompanham a morte; antes, nelas se compraz pensando que a vida vai acabar e
que depois não lhe resta mais tempo para sofrer por Deus e testemunhar-Lhe
outras provas do seu amor. Por isso, oferece-Lhe com afeto e paz estes últimos
restos da sua vida e consola-se unindo o sacrifício da sua morte ao sacrifício
que Jesus Cristo ofereceu um dia por ele na cruz ao seu eterno Pai. E assim
morre feliz, dizendo: In pace in idipsum dormiam et requiescam (3) ― “Em paz
dormirei nele e repousarei”. Oh! que felicidade morrer entregando-se e
repousando nos braços de Jesus Cristo, que nos amou até à morte e quis sofrer
uma morte tão dolorosa, a fim de nos obter uma morte doce e cheia de
consolação! ― Meu irmão, quais seriam os teus sentimentos se tivesses de
morrer neste instante?
II. Ó meu amado Jesus, que para me obter uma morte
suave, quisestes sofrer uma morte tão cruel no Calvário, quando é que Vos
verei? A primeira vez que Vos terei de ver, ver-Vos-ei como meu Juiz no próprio
lugar em que expire. Que Vos direi então? Que me direis? Não quero esperar até
então para pensar nisso; quero meditá-lo agora. Dir-Vos-ei:
Meu caro Redentor, sois Vós aquele que morreu por mim? Houve
um tempo em que Vos ofendi; fui ingrato para convosco e não merecia perdão;
mas, ajudado pela vossa graça, entrei em mim mesmo, e no resto da vida chorei
os meus pecados, e Vós me haveis perdoado. Perdoai-me agora novamente, que
estou a vossos pés, e dai-me a absolvição geral das minhas faltas. Não merecia
mais amar-Vos tendo desprezado o vosso amor; mas pela vossa misericórdia me
tendes atraído o coração, o qual, se Vos não amou segundo o vosso mérito, amou-Vos
pelo menos sobre todas as coisas, deixando tudo para Vos agradar. Que me dizeis
agora? Verdade é que gozar o paraíso e possuir-Vos no vosso reino é uma
felicidade grande demais para mim. Não tenho, porém, coragem de viver longe de
Vós, mormente agora, que me deixastes ver o vosso amável e belo rosto.
Peço-Vos, pois, o paraíso, não para ter mais gozo, mas para melhor Vos amar.
Mandai-me para o purgatório todo o tempo que Vos aprouver.
Manchado, como ainda estou, não quero entrar nessa pátria de pureza e ver-me
entre essas almas puras. Mandai-me ao purgatório, mas não me expulseis para
sempre da vossa presença. Basta-me que no dia que Vos aprouver, me chameis ao
paraíso para nele cantar eternamente as vossas misericórdias. Por ora, ó meu
amado Juiz, levantai a mão, abençoai-me e dizei-me que sou vosso e que Vós sois
e sereis sempre meu. Eu sempre Vos amarei, e Vós sempre também me amareis.
Agora vou para longe de Vós, vou para o fogo; mas vou contente, porque vou para
Vos amar, meu Redentor, meu Deus, meu tudo. Vou contente, sim; mas sabei que,
enquanto estiver longe de Vós, a minha maior pena será esse apartamento. Vou,
Senhor, contar os instantes que decorrerão até que me chameis. Tende piedade de
uma alma que Vos ama com todas as suas forças e deseja ver-Vos para melhor Vos
amar.
É assim, Jesus meu, que espero então falar-Vos. Peço-Vos
entretanto que me deis a graça de viver de modo que possa dizer-Vos então o que
agora pensei. Dai-me a santa perseverança, dai-me o vosso amor. Fazei-o pelo
amor de Maria Santíssima.
Referências:
(1) Sl 72, 26
(2) Hb 10, 34
(3) Sl 4, 8
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias
e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa
Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 303-306)
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