Quando a sentinela não dorme


Há advertências que só fazem sentido quando o sol começa a se pôr. Enquanto o dia está claro, elas parecem exagero; quando a noite cai, revelam-se misericórdia. La Salette pertence a essa categoria incômoda: não consola, não embala, não adorna. Ela acorda.

O problema nunca foi a frase dura — “Roma perderá a fé”. O problema sempre foi a recusa moderna em aceitar que Deus possa falar de queda sem estar negando a promessa. Nosso tempo não sabe mais lidar com tensão. Ou tudo é triunfo permanente, ou tudo é catástrofe. A Tradição, mais sábia, sempre soube viver no meio do caminho estreito: fidelidade sem ingenuidade, esperança sem anestesia.

A Igreja aprendeu cedo, com São Paulo, que a história não caminha em linha reta para cima. Antes da glória, vem a provação. Antes da manifestação, o obscurecimento. A Grande Apostasia não é um delírio apocalíptico: é doutrina apostólica. E doutrina não nasce para ornamentar catecismos, mas para preparar consciências.

O erro do nosso tempo está em confundir indefectibilidade com imunidade histórica. Cristo prometeu que a Igreja não deixaria de ser; nunca prometeu que pareceria sempre fiel aos olhos do mundo — nem mesmo aos olhos dos fiéis mais simples. Há momentos em que a Igreja vive o seu Sábado Santo: Cristo está vivo, mas tudo parece silêncio, ambiguidade, ausência. Quem não entende isso se escandaliza; quem entende, vela.

É aqui que La Salette deixa de ser curiosidade devocional e se torna espelho. Não como sentença definitiva, mas como possibilidade real: a fé pode permanecer verdadeira enquanto sua confissão pública se enfraquece; a Sé pode subsistir enquanto sua voz se torna hesitante; a doutrina pode ser intacta enquanto sua proclamação se dilui em gestos confusos e palavras cautelosas demais.

Nada disso destrói a Igreja. Mas tudo isso a fere.

O drama atual não é a heresia escancarada — essa sempre foi fácil de identificar. O drama é a apostasia prática: a fé ainda é dita, mas já não organiza; é mencionada, mas não decide; é respeitada, mas não anunciada como necessária. Não se nega Cristo, mas evita-se proclamá-Lo como único. E quando a missão vira convivência simbólica, algo essencial já foi deslocado.

Nesse cenário, a advertência de La Salette não autoriza fuga nem rebelião. Autoriza vigilância. A sentinela não abandona a cidade porque vê fumaça no horizonte; ela sobe à torre e abre os olhos. Amar a Igreja não é fingir que tudo vai bem, mas permanecer nela quando tudo parece mal explicado.

Talvez o maior pecado hoje seja o desejo infantil de segurança total: a ilusão de que a promessa divina nos poupará do escândalo, da confusão e da noite. Não poupará. Nunca poupou. O que ela garante é que, mesmo na noite mais densa, haverá um resto fiel que não negocia a verdade para manter a paz.

A Escritura não fala em vão. E Deus não adverte por esporte.

Quando advertências antigas começam a soar atuais, não é sinal de que Deus falhou — é sinal de que a sentinela precisa acordar. E ficar de pé. Em silêncio, se preciso. Mas acordada.

Por seu Irmão Carmelita Secular da Antiga Observância B