Mater Populi Fidelis: Quando a Mariologia Perde a Voz da Tradição — e Perrella Acende o Sinal Vermelho
Introdução
O debate provocado pelas observações do mariologista
Salvatore M. Perrella sobre a Mater Populi Fidelis não é apenas mais uma
polêmica acadêmica para preencher colunas de revista. É um daqueles momentos
raros em que a própria Igreja se vê espelhada e tem que decidir se está diante
de uma simples falha redacional ou de um sintoma mais fundo de descontinuidade
no modo de entender Maria dentro do tecido da fé cristã. A crítica dele tem um
peso especial porque ele não fala a partir da margem, mas do centro vivo da
Mariologia contemporânea, lembrando-nos de que, quando se mexe em títulos
marianos, não se mexe em poesia barata — mexe-se na arquitetura da fé. A Nota
da DDF, segundo ele, soa como uma melodia tocada apenas num instrumento, sem a
harmonia plena que a tradição sempre guardou.
Logo de entrada, o teólogo italiano aponta que o documento
peca por um excesso: uma cristologia tão dominante que atropela as outras
dimensões que sempre formaram a Mariologia. A crítica parece dura, mas é
quirúrgica: Maria torna-se funcional, quase um apêndice explicativo, e perde-se
a vibração simbólica, eclesial, trinitária e antropológica que a colocou, ao
longo de dois mil anos, no coração sensível da fé católica. A acusação é séria
porque toca numa ferida atual: a tendência a transformar a teologia em manual
de instruções, sem imaginação espiritual e sem memória histórica.
Outro elemento que salta aos olhos é a denúncia da falta de
“sobrietas” romana no texto. Perrella vê prolixidade, desajuste e uma
preocupação ecumênica hipertrofiada, como se o documento pedisse desculpas
antes de afirmar qualquer coisa. Isso contrasta abertamente com o estilo
conciso e robusto de documentos como a Lumen Gentium ou a Redemptoris
Mater, que falam da Mãe do Senhor sem medo do peso teológico de suas
palavras. A comparação não é capricho; é critério de qualidade doutrinal.
As observações dele não se limitam a diagnósticos
superficiais: ele vai até o núcleo mais incômodo do problema. O mundo
contemporâneo enfrenta uma crise doutrinal de proporções sérias, onde
realidades centrais como a Trindade e a divindade de Cristo se dissolvem no
imaginário religioso. Nessa confusão, o papel de Maria não pode ser encolhido,
nem tratado como peça secundária. O que a Nota fez, segundo Perrella, foi
reduzir a presença dela num cenário onde, paradoxalmente, a sua clareza seria
mais necessária do que nunca.
Por fim, o mariologista lembra que a Igreja não nasce de
decretos frios. Ela nasce do Evangelho, cresce na tradição e floresce no sensus
fidelium. Se um documento — especialmente um voltado à doutrina mariana — deixa
de ouvir a sabedoria espiritual do povo, a linguagem simbólica que sustentou
séculos de fé, e a progressão histórica da própria teologia, esse documento se
vê inevitavelmente desconectado da vida real da Igreja. E é exatamente aí que
ele enxerga o maior empobrecimento da Mater Populi Fidelis.
1. A ruptura estilística e metodológica com a tradição: comparação com Lumen Gentium e Redemptoris Mater
A Lumen Gentium apresenta Maria dentro da totalidade
do Mistério de Cristo e da Igreja, integrando cuidadosamente dimensões
trinitárias, eclesiológicas, históricas e salvíficas. Já a Redemptoris Mater
amplia esse horizonte com uma profundidade espiritual rara, mostrando Maria
como participante da economia da salvação sem sufocá-la sob fórmulas unívocas
ou reducionistas. Perrella critica o fato de a Mater Populi Fidelis não
seguir essa linha metodológica mais ampla e equilibrada. A Nota — para ele —
soa como um texto que puxa a Mariologia para dentro de um funil cristológico
estreito, deixando de lado nuances que o Vaticano II e João Paulo II sabiam
tratar com elegância e fidelidade.
Essa ruptura se agrava na questão dos títulos marianos. A Lumen
Gentium foi prudente: não absolutizou termos como “Corredentora”, mas
também não os demonizou. Reconheceu a legitimidade de uma tradição viva e
procurou enquadrá-la dentro de um vocabulário mais amplo. A Redemptoris
Mater, por sua vez, assumiu de frente o valor da cooperação de Maria sem
cair em exageros. Em contraste, a Nota atual rejeita o título quase
exclusivamente com base na antipatia de Francisco por ele, sem discutir seu
desenvolvimento histórico, o que para Perrella é um retrocesso hermenêutico.
Outro ponto de divergência é o estilo. A tradição romana
sempre prezou pela concisão e precisão. A Nota da DDF parece derramar palavras
onde faltam conceitos sólidos e, segundo Perrella, isso é sintoma de
insegurança doutrinal. A prolixidade não apenas compromete a clareza, mas dá a
impressão de que o texto tenta resolver tensões teológicas com volume, não com
coerência.
A ausência das dimensões antropológica, trinitária e
simbólica — tão presentes nos documentos anteriores — faz com que a Nota perca
profundidade. Em Lumen Gentium, Maria é ícone da humanidade redimida,
figura da Igreja e espelho do Mistério trinitário. Em Redemptoris Mater,
ela aparece como sujeito histórico inserido no plano de Deus. Na Mater
Populi Fidelis, tais dimensões ficam reduzidas a sombras.
Por tudo isso, para Perrella, a Nota atual parece
desconectada da linhagem doutrinal que deveria sustentar. Não nega o
Magistério, mas o entende de modo estreito, com foco quase exclusivo numa
interpretação cristológica dependente do papa atual.
2. O argumento teológico central: o uso inadequado do critério pedagógico
A crítica ao trecho que afirma que um título perde utilidade
quando exige muitas explicações é talvez o ponto onde Perrella mais demonstra
rigor teológico. Ele sustenta que essa lógica simplesmente não se sustenta
historicamente. Títulos como Theotokos, Imaculada ou Mãe da
Igreja exigiram séculos de disputas e páginas e páginas de teologia. E
ninguém nunca insinuou que, por isso, fossem inadequados. A catequese existe
justamente para explicar mistérios que não cabem num slogan.
Esse critério pedagógico, segundo ele, é uma novidade
desastrosa. Ele rebaixa a complexidade da fé a uma espécie de marketing
espiritual, como se tudo tivesse que ser “fácil” para ser legítimo. Essa
mentalidade vai na contramão da tradição, que sempre viu valor na profundidade,
na elaboração e na densidade simbólica. Perrella lembra que, sem explicação,
até a própria encarnação seria mal compreendida. Portanto, rejeitar um título
por exigir explicações é destruir a própria arte teológica.
Além disso, esse argumento ignora o desenvolvimento
doutrinal posterior ao dogma da Imaculada Conceição. A cooperação de Maria na
redenção foi tema de reflexão contínua, não fruto de entusiasmo devocional.
Vários papas reconheceram essa cooperação com categorias diversas. A Nota,
porém, parece querer neutralizar essa trajetória.
Do ponto de vista hermenêutico, isso significa reduzir a
Mariologia a um único eixo: Cristo. Não se trata de negar Cristo — jamais — mas
de lembrar que a tradição nunca tratou Maria como mero ornamento. Ela é parte
orgânica do Mistério. A pedagogia pastoral, quando usada para justificar um
empobrecimento doutrinário, entrega um resultado raso.
Em resumo, esse critério pedagógico é, para Perrella, um
desvio metodológico grave. A catequese explica títulos complexos; não os
elimina.
3. A crise doutrinária mais ampla: Maria como chave e não como distração
O teólogo não enxerga os problemas da Nota como uma
discussão isolada. Ele os vê como reflexo de uma crise doutrinária maior: a fé
já não se articula com a mesma clareza nos fiéis. A Trindade parece distante, a
divindade de Cristo é questionada, e a identidade cristã se dilui na cultura
contemporânea. Nesse cenário, segundo ele, reduzir Maria não é solução — é erro
estratégico. Ela é parte do caminho para recuperar a visão integral da fé.
A Mariologia, historicamente, sempre funcionou como
reguladora da ortodoxia cristológica: quando Maria é compreendida corretamente,
Cristo é compreendido corretamente. Quando Maria é reduzida, Cristo vira
conceito abstrato. Perrella vê a Nota como excessivamente monofisista, focada
demais na divindade de Cristo sem integrar adequadamente a humanidade e a
participação humana na salvação, cujo ápice é justamente Maria.
A cooperação de Maria não rouba nada de Cristo; testemunha
que a salvação envolve uma resposta humana real. Retirar isso deixa a fé
suspensa no ar, quase desencarnada. Essa preocupação não é populismo teológico,
mas defesa do modo católico de crer.
Além disso, ele lembra que a tradição devocional não é
infantil. É uma sabedoria acumulada. Títulos como Advogada, Esperança
nossa, Refúgio dos pecadores fazem parte de um modo espiritual de
compreender a presença de Maria na vida cristã. Extirpar ou minimizar isso, sob
pretexto ecumênico, é diluir não só a Mariologia, mas a própria alma do
catolicismo.
Por isso, a crítica dele mira não apenas o documento, mas
uma tendência geral na Igreja: a perda do equilíbrio entre razão e sentimento,
entre doutrina e imaginação, entre Magistério e sensus fidelium.
4. Falhas internas da Nota: especialistas, normas sobre fenômenos e excesso de dependência do Papa
Outro ponto delicado levantado por Perrella é a aparente
falta de especialistas na redação da Nota. Para ele, um documento dessa
magnitude deveria ter contado com mariologistas sólidos, teólogos dogmáticos e
estudiosos experientes da tradição. Sem isso, o resultado só poderia ser
limitado. Essa crítica é dura, mas reflete a preocupação com a qualidade
doutrinal.
Ele também observa que a Nota depende demais das novas
normas sobre fenômenos sobrenaturais, normas que ele considera fracas e
descontinuadas em relação à tradição prudencial de 1978. Para ele, essas novas
diretrizes favorecem uma abordagem administrativa e não teológica, reduzindo a
riqueza espiritual de uma área delicada do discernimento eclesial. A Nota, ao
ecoar essas normas, acaba herdando os mesmos problemas estruturais.
Além disso, ele percebe no texto uma dependência exagerada
das opiniões do Papa Francisco. Não é problema citar o papa; o problema é usar
sua opinião pessoal como fundamento doutrinário primário. A tradição é maior do
que qualquer papado isolado — inclusive essa é a lógica da Igreja desde sempre.
Ignorar essa proporcionalidade gera distorções.
Esse tipo de dependência pode levar a documentos que
envelhecem rápido, porque ficam presos ao humor, ao estilo ou à sensibilidade
de um pontificado. Doutrina precisa ser mais sólida, mais atemporal, mais
ancorada na linha histórica da fé. Perrella vê ali uma fragilidade estrutural
séria.
Por fim, ele denuncia a tendência da Nota a tratar Maria com
economia demais, como se enfatizá-la fosse arriscar Cristo. Isso revela, em sua
visão, um problema de fundo: uma teologia que perdeu a confiança em sua própria
tradição.
5. Tradição, sensus fidelium e a linguagem simbólica: a Mariologia real nasce do povo
Perrella insiste que Mariologia não nasce de gabinete. Ela
brota na história, na liturgia, na oração do povo. Isso não é romantismo; é
metodologia católica pura. A Nota, porém, segundo ele, não integra
adequadamente essa linguagem viva, rica e simbólica que moldou títulos, hinos e
devoções ao longo de dois milênios.
Ele lembra, por exemplo, da Salve Regina, onde Maria
é chamada de Advogada nossa e Esperança nossa. Esses títulos têm
sentido teológico profundo, ainda que sejam expressos numa linguagem afetiva. A
teologia não pode ignorar isso, porque o sensus fidelium é uma fonte legítima
da fé. O povo não cria títulos ao acaso; cria porque experimenta Maria espiritualmente.
Além disso, a tradição mariológica sempre soube unir razão e
sentimento — não como dicotomia, mas como unidade orgânica. Joseph Ratzinger
enfatizava exatamente isso: Mariologia é o ponto onde teologia e piedade se
abraçam, onde o dogma conversa com o coração. Quando um documento ignora esse
equilíbrio, ele perde não só conteúdo, mas beleza.
Perrella também nota que Maria é figura simbólica essencial
para compreender a Igreja. Ela representa a humanidade redimida, a resposta
perfeita ao chamado divino, a abertura radical ao Espírito. Reduzir isso a um
rodapé funcional dentro da cristologia é amputar a força poética e espiritual
da fé católica.
Por fim, ele insiste: Maria não é substituta de nada. É
colaboradora. Segunda, mas não secundária. E essa delicada proporcionalidade só
se aprende com a tradição inteira, não com recortes de um pontificado.
Considerações Finais
No fim das contas, o que Perrella denuncia não é apenas um
erro pontual. É a sombra de uma mudança de paradigma na forma como a Igreja
redige documentos doutrinais. Ele teme — com razão — que o equilíbrio
tradicional entre Cristo, Maria e a Igreja esteja sendo substituído por uma
visão minimalista que empobrece a própria fé. A Mater Populi Fidelis não
é herética, não é catastrófica, mas é fraca, e isso basta para gerar confusão.
A comparação com Lumen Gentium e Redemptoris Mater
deixa claro que a Nota atual não mantém o mesmo padrão teológico. Falta-lhe
amplitude, harmonia e proporção. Ela tenta resolver a questão dos títulos
marianos com simplificações pedagógicas e preocupações ecumênicas que, embora
legítimas, se tornam excessivas quando colocadas acima da própria tradição. O
resultado é um texto que parece mais preocupado com receio do que com clareza.
A crítica de Perrella também nos lembra que a Mariologia é,
ao mesmo tempo, uma arte e uma ciência. Exige precisão, mas também
sensibilidade. Exige fidelidade à doutrina, mas também atenção ao sensus
fidelium. Ignorar essas interdependências é transformar a teologia em esquema,
não em sabedoria. A Nota parece ter perdido essa noção.
Outro ponto crucial é que a crise contemporânea exige mais,
não menos, profundidade mariana. Quando a fé vacila, Maria ainda oferece um
rosto humano à graça. Reduzir sua presença é amputar um caminho pedagógico que
a Igreja usou por séculos para conduzir almas a Cristo. A Mater Populi
Fidelis, ao minimizar essa dimensão, perde a chance de responder de forma
mais robusta à crise.
Assim, as críticas de Perrella ecoam como um chamado: não
para descartar o documento, mas para lembrar que a tradição mariana é um
tesouro que não pode ser tratado com timidez. Maria, afinal, nunca foi peso.
Sempre foi ponte.