Maria Corredentora: Entre a Clareza da Tradição e a Neblina da “Mater Populi Fidelis”
Resumindo
Este artigo analisa criticamente a Nota Doutrinária Mater
Populi Fidelis (2025), publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé, à
luz da teologia clássica sobre a corredenção mariana. O estudo mostra que a
rejeição recente do termo “Corredentora” representa uma ruptura conceitual com
o magistério anterior e uma redução indevida da participação de Maria na Economia
da Salvação. Demonstra-se, com base nas Escrituras, na Tradição e no
Magistério, que a cooperação de Maria com Cristo Redentor é teologicamente
legítima, pastoralmente fecunda e espiritualmente coerente com a fé católica.
I. Introdução: O Silêncio como Nova Prudência
A mariologia católica sempre procurou conciliar o mistério e
a precisão. O título de Corredentora, amplamente usado por papas,
teólogos e santos, expressa a colaboração singular de Maria na obra redentora
de Cristo. A recente Nota Mater Populi Fidelis (2025), ao declarar
“sempre inapropriado” o uso do termo, rompe um consenso teológico sedimentado
por séculos e suscita sérias questões doutrinárias e pastorais.
A preocupação expressa no documento — evitar que Maria
pareça “concorrer” com Cristo — é legítima, mas mal aplicada. A tradição
católica nunca entendeu a corredenção como competição, e sim como colaboração
subordinada. O “com” de Corredentora (do latim cum) indica
participação, não igualdade.
Historicamente, a Igreja nunca fugiu da complexidade.
Expressões como Theotokos ou Homoousios exigiram séculos de
debate, mas se tornaram pilares da ortodoxia. Portanto, o argumento de que o
termo “Corredentora” “requer demasiadas explicações” (DDF, Mater Populi
Fidelis, §12) não se sustenta. Explicar é dever magisterial, não fraqueza
pastoral.
O problema não está na dificuldade conceitual, mas no receio
de afirmar plenamente a mediação mariana. A teologia moderna, com frequência,
teme o mistério da cooperação entre Deus e o homem. No entanto, a Economia
da Salvação é cooperativa: Deus age com a liberdade humana, não contra ela.
Por isso, uma análise teológica rigorosa exige confrontar a
visão clássica da corredenção — solidamente ancorada na Tradição — com as
ambiguidades e reducionismos da Nota de 2025. Esse confronto revela um
deslocamento teológico que, sob pretexto de prudência, pode empobrecer a fé.
II. A Doutrina Clássica da Corredenção Mariana
1. Fundamento Bíblico
A colaboração de Maria com o Redentor aparece já no
Evangelho. No “fiat” da Anunciação (Lc 1,38), a Virgem consente
livremente com o plano salvífico. Na profecia de Simeão (Lc 2,35), é-lhe
anunciada uma “espada” que trespassará sua alma — símbolo de participação na
Paixão do Filho. E, ao pé da Cruz (Jo 19,25–27), Maria se oferece junto a
Cristo, unindo o seu sofrimento ao sacrifício redentor.
A exegese patrística reconhece aqui um modelo de
colaboração: Santo Irineu chama Maria de “Nova Eva”, cuja obediência
desatou o nó da desobediência de Eva (cf. Adversus Haereses, III, 22,4).
Essa tipologia é a raiz da doutrina corredentora: a mulher que, associada ao
Novo Adão, participa na restauração do gênero humano.
2. Desenvolvimento Patrístico e Escolástico
A tradição medieval, especialmente com São Bernardo de
Claraval e Santo Boaventura, aprofundou a noção de “compaixão redentora”. São
Bernardo afirma: “Ela foi associada à Paixão de seu Filho por uma compaixão de
tal intensidade que mereceu ser chamada Corredentora” (Sermo in dom.
infra Oct. Assumpt.).
São Tomás de Aquino, embora sem empregar o termo, ensina que
Maria “cooperou para a salvação humana de modo meritório, consentindo na
Encarnação e permanecendo firme junto à Cruz” (Summa Theologiae, III,
q.30, a.1; q.48, a.1 ad 3).
3. O Magistério Pontifício
Os papas do século XX confirmaram essa tradição. Pio XI
(Discurso, 1933) chamou Maria “Corredentora do gênero humano”. Pio XII, na
encíclica Mystici Corporis (1943), afirmou que Maria “ofereceu o Filho
no Calvário como nova Eva, para todos os filhos de Adão”. São João Paulo II, em
múltiplas alocuções, declarou: “Maria foi associada de modo totalmente singular
à Redenção” (Audiência de 8.09.1982).
A Congregação para a Doutrina da Fé (então Santo Ofício)
nunca condenou o termo — ao contrário, o reconheceu como legítimo, desde que
entendido em sentido subordinado. A tradição magisterial é, portanto,
coerente e contínua.
4. Dimensões da Corredenção
A teologia distingue três níveis de corredenção:
- Dispositivo:
o consentimento de Maria na Encarnação;
- Sofrido:
sua união dolorosa com Cristo no Calvário;
- Espiritual:
sua mediação contínua na distribuição das graças.
Cada aspecto manifesta a liberdade redimida da criatura em
plena sintonia com a vontade divina. Maria, portanto, é o paradigma da
cooperação humana com a graça.
5. Síntese Teológica
Ser “Corredentora” não significa partilhar da natureza
redentora de Cristo, mas participar da sua eficácia por graça. Cristo é o único
Redentor, mas quis associar Maria à sua obra. A glória de Maria, assim, é o
espelho da glória do Filho.
III. A Nota “Mater Populi Fidelis” (2025): Prudência ou Reducionismo?
1. O Argumento da Unicidade de Cristo
A Nota reafirma a centralidade da mediação de Cristo,
citando 1Tm 2,5. No entanto, confunde unicidade com exclusividade. A tradição
distingue mediação principal (Cristo) e mediações subordinadas (Maria, os
santos, a Igreja). Ao negar legitimidade ao termo “Corredentora”, o documento
colapsa essa distinção, empobrecendo a teologia da participação.
2. O Critério da “Inadequação Pastoral”
O texto afirma que um termo “que requer contínuas
explicações” torna-se inadequado. Essa argumentação pastoral é conceitualmente
inconsistente. A fé católica sempre exigiu explicação contínua: homoousios,
Trindade, Eucaristia. A catequese não é obstáculo, mas caminho da
compreensão.
3. O Viés Ecumênico
O receio de ferir sensibilidades protestantes é notório. A
Nota procura evitar mal-entendidos sobre a “mediação única de Cristo”. Mas o
ecumenismo autêntico não se constrói à custa da identidade católica. Como
advertia Bento XVI, “a unidade não pode ser fruto de renúncias à verdade” (Ecclesia
in Medio Oriente, 2012, n.16).
4. Um Sintoma Teológico Moderno
O texto expressa a tendência moderna de reduzir a cooperação
humana à mera passividade diante da graça. Essa visão contrasta com a
antropologia católica, que vê na liberdade um dom redimido, capaz de
corresponder a Deus. Negar a corredenção é enfraquecer o sentido da vocação
colaboradora do homem.
5. Um Retrocesso Magisterial
Por fim, o documento contradiz o desenvolvimento doutrinário
natural do século XX. Se a Igreja não teme dizer que Maria é Mediatrix
omnium gratiarum, por que hesita em chamá-la Corredentora? O magistério
recente parece abandonar um conceito precisamente no momento em que a cultura
contemporânea mais precisa dele: o da cooperação redentora do amor.
IV. Conclusão: Redescobrir a Lógica da Participação
A corredenção mariana não ameaça a unicidade de Cristo, mas
a manifesta. Maria é o espelho mais puro da Redenção, a mulher cujo “fiat”
inaugura a economia da graça. A prudência excessiva da Mater Populi Fidelis
revela um desconforto com o sobrenatural e um medo de parecer “demais mariana”.
Negar o título “Corredentora” é ceder a um minimalismo
teológico que empobrece a fé e deseduca o povo de Deus. A Igreja não
precisa de silêncio, mas de explicação. O mistério não se simplifica — se
contempla.
Redescobrir Maria como Corredentora é redescobrir a vocação
colaboradora da Igreja, corpo que continua, no tempo, a obra do Redentor.
Como escreveu São Bernardo: “De Maria, nunca é demais falar” (De
laudibus Virginis Matris, II, 16). Calar sobre ela, esse sim, é o
verdadeiro exagero.
Referências Bibliográficas
Bento XVI. Ecclesia in
Medio Oriente. Vaticano, 2012.
Congregatio pro Doctrina
Fidei. Mater Populi Fidelis. Vaticano, 2025.
Irineu de Lião. Adversus
Haereses. III, 22,4.
João Paulo II. Audiência
Geral, 8 de setembro de 1982.
Pio XII. Mystici
Corporis Christi. Vaticano, 1943.
São Bernardo de Claraval. Sermo
in dom. infra Oct. Assumpt.
Santo Tomás de Aquino. Summa
Theologiae. III, q.30; q.48.
- Teodoro
Roschini. La Corredenzione Mariana. Roma: Marianum, 1946.
- Von Balthasar, Hans Urs. Teodramática IV: O Ato. São Paulo: Loyola, 2005.