O Chamado que queima, o deserto que cura
Existe um fio invisível que atravessa os séculos e nos
costura à areia quente de um deserto. Não falo aqui de um lugar geográfico, mas
de um território interior, áspero, essencial, onde só o necessário sobrevive. O
deserto da alma. O lugar onde Deus fala baixo, mas cada palavra d’Ele é um
trovão.
A espiritualidade do deserto não é uma estética de paisagem
nem um retiro romântico. É uma escola de desapego. Um campo de batalha onde
lutamos contra a ilusão do controle, contra a sedução da segurança. É ali, onde
tudo falta, que descobrimos o que nunca nos foi tirado: a presença de um Deus
que chama. Que chama pelo nome. Que chama pra fora.
“Sai da tua terra”, Ele disse a Abraão — e não foi só
um convite ao nomadismo físico, foi uma ordem contra a zona de conforto, contra
as raízes rasas plantadas no previsível. Foi a convocação ao risco. Deus,
quando chama, não explica muito. Ele não apresenta PowerPoint. Ele pede
confiança.
E Abraão vai. Vai sem mapa, sem Waze, sem manual.
Apenas com uma promessa no peito e um silêncio no caminho. O mesmo silêncio que
conhecemos bem quando nos damos conta de que estamos sozinhos com Deus.
Essa é a mística do deserto: caminhar com Deus como se fosse
com o invisível, mas percebendo que é a única presença real. O resto, tudo o
que antes parecia sólido — certezas, afeições, conquistas — se evapora como
orvalho quando o sol da provação esquenta.
No deserto, o homem se desnuda. E aí descobre que a fé não é
uma ideia bonita. É a coragem de continuar andando quando os pés sangram, é a
ousadia de confiar quando tudo dentro de nós quer voltar para o Egito, para as
cebolas e os escravos, para as correntes conhecidas.
Moisés também andou ali. Elias se escondeu ali. E Jesus…
Jesus começou ali. Como quem sabe que a vida espiritual séria começa quando o
barulho acaba e o estômago ronca.
Ali, onde não há likes nem luz artificial, a alma
escuta. Ali, onde não há palco, o coração confessa. O deserto é o lugar onde o
homem se torna verdadeiro — ou não sobrevive.
Por isso, essa espiritualidade não é moda, é herança.
Herdamos de patriarcas e profetas uma pedagogia da escassez. Deus ensina pela
ausência. Forma pelo silêncio. E quando tudo em nós reclama por respostas, Ele
responde com uma presença discreta, mas inconfundível.
Talvez você esteja nesse deserto agora. Talvez tudo o que
você era esteja ruindo, e você sinta que não tem mais chão. Escuta: não se foge
do deserto. A travessia é o caminho. E como Abraão, você pode partir com a alma
tremendo, mas os olhos fixos na promessa. Porque Deus não brinca de chamar.
Quando Ele fala, é porque já preparou o terreno — não o da chegada, mas o do
coração que vai resistir à viagem.
No fim, o deserto não é o fim. É a oficina onde nasce a nova
humanidade. É onde nos tornamos, enfim, o que deveríamos ser: criaturas nas
mãos do Criador, filhos confiantes nas promessas do Pai, peregrinos a caminho
da Cidade Eterna.
E isso, meu caro, é mais do que religião. É revolução.
Por seu Irmão Carmelita Secular da Antiga Observância B.