Vida Comum Carmelitana: Fidelidade aos Votos e ao Prior

Retábulo do Carmine Alberto, patriarca de Jerusalém, entrega a primeira norma aos eremitas Pietro Lorenzetti (1329) Pinacoteca Nacional, Siena (Toscana)

No artigo anterior, percorremos os caminhos de Elias e Maria, figuras que não só moldaram a espiritualidade do Carmelo, mas também servem como arquétipos de escuta, silêncio, entrega e fidelidade. Sob a inspiração do profeta inflamado e da Virgem silenciosa, vimos como os primeiros eremitas do Monte Carmelo encontraram, nas Escrituras e na solidão, um modo de “viver em obséquio de Jesus Cristo” — expressão que abre a Regra do Carmo e que resume toda a vocação carmelitana.

Essa obediência amorosa a Cristo, vivida com coração puro e consciência serena, não é teórica nem abstrata. É uma forma concreta de vida, nascida da experiência daqueles primeiros irmãos que, sedentos de Deus, pediram ao Patriarca Alberto de Jerusalém uma regra que orientasse seu caminho. Assim surgiu o texto sagrado da Regra — e com ele, um chamado exigente e transformador: seguir Jesus de verdade, com tudo, com a vida toda.

Nos números 1 a 3 da Regra, vemos esse espírito fundante: o Carmelo não é um ideal vago, mas um projeto de vida real, encarnado, comunitário. Alberto fala a homens concretos, vivendo junto à fonte do profeta Elias, no Monte Carmelo, desejosos de uma vida conforme o Evangelho, centrada em Cristo, marcada por pureza interior e fidelidade.

É com esse espírito — o de Elias que arde e de Maria que guarda tudo no coração — que agora caminhamos para o próximo passo: a vida comum carmelitana, tal como aparece no número 4 da Regra. A vida no Carmelo não é isolada, não é autônoma, não é desordenada. É vida fraterna, sob um Prior eleito, vivida com obediência, castidade e renúncia à propriedade. É essa fidelidade concreta — aos irmãos, à autoridade fraterna, e aos votos — que mantém vivo o fogo do Carmelo ao longo dos séculos.

Este é o tema que agora nos ocupa: “Vida Comum Carmelitana: Fidelidade aos Votos e ao Prior” — porque viver em obséquio de Jesus Cristo é, também, viver com e pelos irmãos.

II. A infraestrutura da vida comunitária

Regra do Carmo, número 4

4. Determinamos, em primeiro lugar que tenham um de vocês como prior, que seja eleito para este serviço através do consenso unânime de todos ou da parte mais numerosa e mais madura. A ele cada um dos outros prometa obediência e se empenhe em cumprir de verdade, na prática, o que prometeu, juntamente com a castidade e a renúncia à propriedade.

O Carmelo inaugura um novo jeito de viver a autoridade, como serviço e fraternidade. Quando os Primeiros Carmelitas do Monte Carmelo pediram a Santo Alberto, Patriarca de Jerusalém, uma forma de vida, não imaginaríamos que a primeira norma de sua Regra seria sobre a escolha do Prior (Regra do Carmo, n.º 4). Antes mesmo de tratar da oração, da vida comum ou da penitência, a Regra Carmelitana estabelece que um dos irmãos seja escolhido como Prior. Esse detalhe aparentemente administrativo revela uma profunda visão espiritual: a autoridade, no Carmelo, é exercida como serviço entre iguais, não como poder absoluto.

Ao invés de nomear um Abade com autoridade vitalícia, como é comum nos mosteiros, a Regra propõe um Prior: um irmão como os outros, eleito por tempo determinado, a serviço da comunidade. A própria etimologia da palavra “Prior” — que significa “o que está um pouco à frente” — expressa essa ideia de liderança discreta, não impositiva. Ele é um facilitador da vida fraterna, alguém que coordena, anima e representa a comunidade, mas que permanece dentro dela como irmão.

Essa escolha não é apenas organizacional, mas profundamente evangélica. O Prior, como Cristo, é chamado a lavar os pés dos irmãos, sendo o primeiro a obedecer à Regra que todos professam viver. A sua função é exercida com os irmãos, em espírito de colegialidade: as decisões são tomadas em comum, e a autoridade nunca se transforma em domínio.

A Regra repete diversas vezes expressões como “com a maioria”, “em comum”, “com os irmãos”, mostrando que a vida no Carmelo é marcada pela escuta mútua e pelo discernimento partilhado.

Assim, a Regra Carmelitana oferece uma lição atualíssima: em tempos de centralizações e personalismos, ela nos lembra que o verdadeiro governo é serviço, e que toda autoridade cristã deve nascer do coração de uma comunidade de irmãos. A eleição do Prior não apenas organiza a vida comum, mas encarna um valor essencial do Carmelo: a fraternidade evangélica vivida na humildade e na obediência a Cristo.

Os três Votos: um novo jeito de viver em todas as dimensões. Obediência, Castidade e Pobreza como caminhos de liberdade evangélica.

A Regra do Carmo, em sua versão original de 1207, falava apenas da obediência. Foi o Papa Inocêncio IV, em 1247, quem explicitou os outros dois votos — castidade e pobreza — alinhando o Carmelo à vivência dos Conselhos Evangélicos. Muito mais que regras externas, esses votos redesenham por completo a maneira de nos relacionarmos com Deus, com os outros e com os bens da vida, propondo um estilo de vida profundamente evangélico e libertador.

A Obediência Carmelitana é oferecida ao Prior, como representante de Cristo e da comunidade. Mas essa obediência não anula a vontade pessoal — ao contrário, pede que ela seja ativada e unida à vontade de Deus, como fez Jesus.

Viver em “obséquio de Jesus Cristo” é caminhar no seguimento do Filho, que disse: “Faço sempre o que agrada ao Pai” (Jo 8, 29). A Obediência purifica o relacionamento com Deus, colocando-o no centro da vida e do discernimento cotidiano.

A Castidade, vivida conforme o estado de vida (casado ou celibatário), não é negação do amor, mas sua plenitude. O casto ama com liberdade, com maturidade, com entrega sincera. No Carmelo, esse voto liberta o coração para estar disponível a Deus e aos irmãos, sinalizando já desde agora a vida do Reino, onde “seremos como anjos” (cf. Mt 22, 30). Jesus mesmo nos chama de amigos (Jo 15, 15), e essa amizade é o modelo de uma castidade que irradia o amor divino.

A Pobreza Evangélica nos coloca em comunhão com os bens, não como donos, mas como servos e administradores. Viver em Pobreza é renunciar ao egoísmo da posse individual, optando por uma vida simples, partilhada e solidária com os mais necessitados. Isso não significa miséria ou desleixo, mas zelo responsável pelo que se tem, e compromisso com uma sociedade mais justa. A Pobreza Carmelitana nos insere no estilo de Jesus, que nasceu pobre, viveu entre os pobres e denunciou as injustiças dos ricos (cf. Lc 6, 20-25). Ela purifica nosso relacionamento com o mundo e nos torna sinal profético do Reino.

A Regra do Carmo não começa com preceitos espirituais abstratos, mas com a estrutura concreta da vida fraterna. Ao propor a eleição de um Prior — não como senhor, mas como servidor escolhido entre os irmãos —, Santo Alberto lança as bases de uma comunidade marcada pela Obediência Evangélica, vivida em liberdade e comunhão. É neste contexto que ganham pleno sentido

os Votos de Obediência, Castidade e Pobreza: expressões de uma consagração total a Deus, que se realiza no seio de uma fraternidade real, concreta e participativa.

No Carmelo, a autoridade é serviço, e a consagração pessoal está sempre a serviço do bem comum. Os Conselhos Evangélicos deixam de ser apenas promessas individuais e passam a configurar um estilo de vida comum, onde todos são corresponsáveis pela edificação da comunidade e pela busca da vontade de Deus. Essa vivência fraterna e consagrada é o terreno fértil onde floresce o verdadeiro espírito carmelitano.

É com essa base que a Regra prossegue, guiando os irmãos na construção de uma vida centrada em Deus, equilibrada entre comunhão e recolhimento. Os próximos números da Regra — que comentaremos no próximo mês — mostram como esse ideal se encarna no cotidiano, nos espaços e nos tempos da vida comum. Preparados com essa fundação, somos convidados a continuar a escuta atenta do que o Espírito inspira através da Regra.

Por Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância

O texto acima reflete, a partir do livro: MESTERS, Frei Carlos. Ao Redor da Fonte: Um comentário da Regra do Carmo. Belo Horizonte: Província Carmelitana Santo Elias, 2013.