A Devoção à Divina Misericórdia e Pio XII: Um Olhar Crítico
Introdução
A devoção à Divina Misericórdia, promovida por Santa
Faustina Kowalska, tem sido um dos movimentos mais populares dentro da Igreja
Católica nas últimas décadas, especialmente após a canonização de Santa
Faustina pelo Papa João Paulo II em 2000. No entanto, a devoção tem gerado
controvérsias desde seu surgimento, principalmente no que tange à aprovação e
recepção de sua mensagem por parte do magistério da Igreja, incluindo figuras
proeminentes como o Papa Pio XII.
A Divina Misericórdia e Suas Origens
Santa Faustina Kowalska, uma freira polaca do século XX,
afirmou ter recebido revelações espirituais de Jesus Cristo, que lhe confiou a
missão de promover a devoção à Sua Divina Misericórdia. Esta devoção é centrada
na confiança plena na misericórdia de Deus e na prática da oração pela salvação
das almas, especialmente a oração da “Coronilha da Divina Misericórdia”,
que deve ser rezada às 15 horas, hora da morte de Cristo.
A principal mensagem da devoção, tal como descrita no “Diário
de Santa Faustina”, é a confiança absoluta na misericórdia de Deus, a
importância da confissão regular e da oração pela salvação das almas,
especialmente as mais necessitadas.
Pio XII e a Devoção: Conflitos e Controvérsias
O Papa Pio XII (1939-1958) foi um pontífice influente que
governou a Igreja durante um período turbulento, incluindo a Segunda Guerra
Mundial e o início da Guerra Fria. Durante seu pontificado, a devoção à Divina
Misericórdia ainda estava em seus estágios iniciais e não gozava de aprovação
oficial. Em parte, devido à natureza das mensagens de Santa Faustina, que
envolviam visões e revelações privadas, Pio XII foi cauteloso em sua abordagem
a essas novas formas de devoção.
1. O Ceticismo de Pio XII
Pio XII era conhecido por ser extremamente cauteloso com
revelações privadas, especialmente as que envolviam elementos que podiam ser
interpretados como inovadores ou contraditórios com a tradição da Igreja. Para
ele, as revelações de Santa Faustina, embora sinceras e profundamente
religiosas, não tinham uma base suficiente para uma aprovação imediata. O Papa
queria garantir que qualquer devoção nova estivesse em completa harmonia com a
doutrina católica tradicional.
2. O Relacionamento com a Doutrina Tradicional
Uma das críticas que surgiram contra a devoção à Divina
Misericórdia é o seu aparente contraste com algumas das ênfases tradicionais do
catolicismo, como a ênfase na justiça de Deus e na penitência. Alguns teólogos
e católicos conservadores viam a insistência excessiva na misericórdia como uma
forma de diluição da gravidade do pecado e da necessidade da penitência
verdadeira.
Além disso, o estilo de oração da “Coronilha da
Divina Misericórdia” e a ênfase na confiança incondicional em Deus podem ter
sido interpretados por alguns como uma ênfase excessiva na “facilidade da
salvação”, minimizando a necessidade de esforço humano para alcançar a
santidade.
3. A Percepção de Inovação
Pio XII, como muitos de seus predecessores, preferia que
qualquer devoção fosse firmemente enraizada na tradição da Igreja, e muitas
dessas devoções passavam por um longo processo de discernimento e aprovação, o
que não era o caso da Divina Misericórdia em seus primeiros anos. A inovação do
“novo culto” — uma forma de veneração inédita para o público — pode ter sido
vista como uma ruptura com as devoções mais consolidadas, como as devoções ao
Sagrado Coração de Jesus, que enfatizam tanto a misericórdia quanto a justiça
divina, mas de uma maneira mais equilibrada.
A aprovação Papal sob João Paulo II
A maior mudança veio com o pontificado de João Paulo II, que
não só aprovou a devoção à Divina Misericórdia, mas também a promoveu
ativamente. João Paulo II, que teve uma relação pessoal com Santa Faustina e
uma profunda compreensão da importância de sua mensagem, proclamou o Domingo da
Misericórdia, instituindo-o oficialmente para toda a Igreja. Em 2000, ele
canonizou Santa Faustina, tornando-a uma santa universalmente venerada.
Conclusão: Uma Questão de Equilíbrio
A devoção à Divina Misericórdia, ao longo de sua história,
refletiu tensões entre a tradição da Igreja e a busca por novas expressões de
fé. A postura cética de Pio XII, embora compreensível no contexto de seu
pontificado, é vista hoje por alguns como excessivamente rígida. No entanto, é
importante reconhecer que as hesitações de Pio XII também refletiam um zelo
pela preservação da doutrina católica tradicional. O amadurecimento da devoção
com a canonização de Santa Faustina e a promulgação do culto oficial por João
Paulo II indicam que, no fim, a mensagem de misericórdia encontrou seu lugar no
coração da Igreja.
Por um Carmelita
Secular da Antiga Observância
Referências Bibliográficas
- Sullivan, Francis A. The Church and the Divina Misericordia: The Teachings of John Paul II and the Early Years of the Devotion. New York: Theological Publishers, 2010.
- Czempka, Stanislaus. Theology of Mercy: A Critical Look at the Devotion of Sister Faustina. Chicago: Sacred Heart Press, 2005.
- Faustina Kowalska, Santa. Diário de Santa Faustina: A Misericórdia de Deus nas Almas. Trad. João Paulo II, São Paulo: Paulinas, 2006.
- Zanchettin, Andrea. Pio XII: A Igreja entre Guerra e Paz. Roma: Editora Vaticana, 2017.