Há uma nova teologia em andamento, cuja meta já não é gerar santos para o Céu, mas formar militantes ou “bons cidadãos” para as causas humanitárias neste mundo. O modelo deixa de ser Santa Teresinha e passa a ser Greta Thunberg.
A Igreja celebrou no último
domingo a festa do Batismo do Senhor, encerrando assim o ciclo litúrgico do
Natal. No calendário antigo, esta festa tinha data fixa: 13 de janeiro. Por
isso, somos convidados hoje a meditar mais a fundo sobre a nossa própria
vocação batismal, que nos faz participar da vida divina e nos
torna herdeiros do Céu. Trata-se de avaliar o que temos feito para desenvolver
a graça do Batismo em nossas almas, especialmente neste tempo de confusão sobre
o papel dos batizados no mundo.
Para fins didáticos, vamos
apresentar primeiro a doutrina comum sobre a graça batismal e os seus efeitos
sobre os batizados e, depois, veremos como a adoção de uma confusa antropologia
levou muitos dentro da Igreja a perverter o conceito de santidade e a
relativizar a gravidade do pecado.
A graça santificante e a
filiação divina
O sacramento do Batismo é a porta
de entrada da Igreja. Nosso Senhor falou dele em várias ocasiões, ordenando aos
Apóstolos que batizassem todas as nações em nome do Pai e do Filho e do
Espírito Santo. Pelo Batismo, o homem renasce para a vida da graça
e torna-se filho de Deus, membro do Corpo místico de Cristo. O Batismo
realiza em nós uma verdadeira transformação, imprimindo-nos na alma um caráter
indelével e conferindo-nos um organismo espiritual,
radicado na graça santificante, que faz de nós morada de Deus e
templo do Espírito Santo. Essa graça, porquanto justifica o ímpio e lhe confere
uma participação na vida de Deus, é, segundo Santo Tomás, uma obra maior “do
que a criação do céu e da terra” (STh I-II 113, 9).
É preciso insistir ainda na
natureza apotropaica deste sacramento. O Batismo, com efeito,
supõe um verdadeiro exorcismo, pois nele não apenas se perdoa o pecado original
como se resgata o homem do poder do demônio, ainda que não se apaguem de todo
as inclinações da concupiscência. Auxiliado porém pela graça de Jesus Cristo,
ensina o Concílio de Trento, o homem pode ordenar suas paixões e vencer as sugestões
pecaminosas do mundo, do diabo e da carne, de forma que a concupiscência tenha
cada vez menos influência sobre a vontade que não consente e luta contra as más
inclinações. O homem regenerado pelo Batismo deve, por isso mesmo, crescer em
virtude pela correspondência às graças atuais e pelo bom combate aos pecados,
até poder dizer com São Paulo: “Vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim”. Na
linguagem paulina, o homem exterior, ou seja, os apetites
sensíveis e as paixões, cede ao homem interior, a saber, a vida
íntima e ordenada com Deus. Nisto consiste a santidade.
Essa dinâmica só é interrompida
quando o homem cai em pecado mortal. Nesse estado, se bem não deixe de ser
membro da Igreja, ele perde todavia a graça santificante, sem a
qual é impossível ordenar retamente a vida a Deus. O pecado mortal, além disso,
abre as portas para uma influência do diabo não raro muito mais severa que
dantes, fazendo o batizado não só voltar à condição de escravo das paixões, mas
a romper as promessas feitas a Deus. Em outras palavras, o homem exterior volta
a dominar o interior, e a vida humana degenera-se muita vez em animalidade:
como recorda São Paulo, o homem interior é arrastado por outra lei, “que luta
contra a Lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus
membros” (Rm 7, 23). Com essa condição, o homem começa a se
amar por aquilo que há de mais baixo em si mesmo — “tudo o
que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida” (1Jo 2, 16) —, indo do amor doentio de
si (filáucia) ao desprezo declarado de Deus, segundo a famosa expressão de
Agostinho.
Em vista deste combate espiritual,
Nosso Senhor fundou a Igreja para ser o lugar onde os batizados podem encontrar
os meios ordinários para recuperar a graça santificante e viver uma vida
divina, progredindo nas virtudes cristãs. A Igreja existe, portanto, para
cooperar na regeneração das almas, libertando-as do pecado e ordenando as
paixões do corpo, pelo que os legítimos pastores sempre viram a necessidade de
ensinar os homens a cultivar a vida interior por meio da oração e da
ascese, com a qual a alma submete o corpo e não o contrário. Longe
de um dualismo platônico que nega a dimensão corpórea humana, a Igreja sempre
procurou engendrar uma sociedade de homens que preservam a graça batismal e,
por isso, se amam a partir daquilo que há de principal neles e os torna
diferentes de todos os demais animais: a alma imortal. Por essa razão, sempre
se disse que “a lei suprema da Igreja é a salvação das almas” — salus
animarum suprema lex.
Essa pedagogia cristã está
fundada na própria natureza humana. Sim, o ser humano é um composto de corpo e
alma, mas é justamente a alma racional que o torna humano e
não apenas homem. Na alma racional estão as
faculdades da inteligência e da vontade pelas quais todo homem e toda mulher
podem elevar-se à verdade sobre si mesmos e sobre Deus. Eles são capazes de transcender
os próprios instintos e inclinações animais. Movidas pela graça, com efeito,
aquelas duas faculdades da alma dão ao ser humano a possibilidade de terem vida
sobrenatural, porque, como ensina Sto. Tomás, “a graça não tolhe, mas
aperfeiçoa a natureza” — gratia non tollit naturam, sed perficit eam (STh I,
1, 8, 2). Por isso, o mesmo Doutor Angélico explica que “o que há de
principal no homem é o espírito racional, sendo secundária a natureza sensitiva
e corpórea” (STh II-II 25, 7). Nesse caso, conclui-se que “os
bons consideram como o que tem de principal a natureza racional, ou, o homem
interior; e assim julgando, consideram-se como sendo o que são”, ao passo
que “os maus julgam ter como elemento principal a natureza
sensitiva e corpórea, isto é, o homem exterior”, e por isso não se amam
verdadeiramente (STh II-II 25, 7).
“Os maus julgam ter como
elemento principal a natureza sensitiva e corpórea, isto é, o homem exterior”,
e por isso não se amam verdadeiramente.
A graça batismal, ao fim e ao
cabo, implica uma elevação do ser humano, das faculdades da sua alma, para que
ele se ame de verdade segundo a sua natureza de criatura feita à imagem e
semelhança de Deus. Mas se ele se descuida de sua alma e, por conta
disso, perde a graça, o resultado é a sua própria desumanização, porque começa
a viver apenas para satisfazer o homem exterior. Por essa razão, S. Luís de
Montfort recordava que o desregramento universal das civilizações não tinha
outra procedência “senão do esquecimento em que se vive das promessas e
compromissos do santo Batismo, e porque cada um não ratifica espontaneamente o
contrato de aliança feito com Deus por seu padrinho e sua madrinha” (Tratado
da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, 128). E o próprio Concílio
de Sens, lembrava o santo, “declarou que a causa principal da corrupção então
reinante vinha do esquecimento e ignorância em que se vivia dos compromissos
tomados no santo Batismo”.
Os grandes santos da Igreja, por
sua vez, foram homens que corresponderam docilmente às graças de Deus,
cumprindo as promessas batismais de renunciar ao diabo, ao pecado e às suas
pompas. Por essa disposição, eles não perderam a sua humanidade. Ao contrário,
o Deus da paz lhes concedeu a santidade perfeita, como diz São Paulo, de modo
que todo o seu ser, “espírito, alma e corpo”, foi conservado irrepreensível
para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1Ts 5, 23).
Estes homens configuraram-se a tal ponto a Jesus, que qualquer um poderia dizer
deles o que disse de João Maria Vianney um ex-ateu pouco depois de conhecê-lo:
“Eu vi Deus num homem”.
A nova santidade do homem
exterior
A doutrina até agora exposta
sempre foi o ensinamento comum do Magistério e, inclusive, está presente em
vários parágrafos da Constituição Gaudium et Spes. Acontece que, de
uns tempos para cá, muitos teólogos e pregadores resolveram adotar outra
antropologia e teologia sacramental, influenciados por interpretações
unilaterais do Concílio e por novidades filosóficas aparentemente bem
intencionadas. Desde o humanismo integral de Jacques Maritain,
desenvolveu-se para além da proposta do autor a noção de que falar de salvação
das almas seria dualismo. Começou-se então a se falar de “salvação da
pessoa” ou “salvação integral do homem”, uma tentativa de considerar igualmente
todas as dimensões do ser humano, como se não houvesse nele uma realidade
central chamada alma. Chama a atenção, aliás, a quase ausência do termo nas
orações litúrgicas do Missal reformado [1].
O postulado do humanismo
integral, por conseguinte, exige obrigatoriamente um olhar global e positivo
sobre as realidades temporais. Mas como? Não importa tanto se a alma
está ou não em pecado grave, mas se a vida da pessoa é “boa” em conjunto. A
santidade torna-se assim um bem secularizado, diluído entre os demais valores
mundanos, não mais separado como consagração a Deus, pois se entende que, no
novo humanismo, “o homem se define antes de mais pela sua responsabilidade com
relação aos seus irmãos e à história” (Gaudium et Spes, 55) [2].
Vejamos como isso se aplica em
alguns casos.
No domínio da virtude da
religião, insiste-se demasiadamente na necessidade do ecumenismo e do
diálogo inter-religioso. Mas o propósito dos dois movimentos, pensados nesta
nova abordagem, passa longe do chamado à conversão a Cristo e à sua Igreja.
Trata-se apenas de pôr em evidência o que haveria de bom em cada religião e, a
partir daí, propor iniciativas de cunho solidário para o bem-estar social.
Porque, no fim das contas, todas as religiões seriam igualmente boas,
praticadas ou por “cristãos anônimos” ou por pessoas que ainda não chegaram à
“plena comunhão”. Daí que as chamadas “missões” hoje em dia pouco se dediquem a
batizar ou catequizar as populações ainda não evangelizadas (coisa, aliás,
considerada hoje quase um crime), e se resumam a lutas sociais pelos direitos
humanos.
A mesma abordagem passou à teologia
moral. Em nome da “misericórdia pastoral”, por exemplo, evita-se falar em
fornicação ou adultério a quem vive relações pré ou extraconjugais. Usam-se
eufemismos como “situações irregulares” ou “segunda união” para atenuar a
gravidade destes estados, nos quais, ao mesmo tempo, haveria tantas coisas boas
— o convívio, o afeto, a familiaridade, a “fidelidade” etc. — que, pesadas
todas na balança, tornariam irrelevante a “irregularidade”, abrindo inclusive
as portas para a recepção dos sacramentos. Não admira,
portanto, que já se esteja falando dentro da Igreja dos “aspectos
positivos” das relações homossexuais, sem que se exija mais qualquer renúncia
ao pecado para viver a castidade. Um pastor de almas que decidisse advertir
sobre a gravidade do pecado e suas consequências para a vida da graça seria
“desumano” por ter um olhar supostamente parcial, preocupado exclusivamente com
a alma, e não com o “bem integral” da pessoa humana.
O resultado desta nova teologia é
a formação de uma sociedade preocupada mais com os bens exteriores que com os
bens interiores; é a sociedade chamada por Gustavo Corção de “antropoexcêntrica”.
A graça batismal, a vida interior, as práticas de piedade, a frequência aos
sacramentos teriam um sentido quase irrelevante diante da luta pelo progresso e
o bem-estar dos povos. Por isso a pregação de muitos pastores deixa de
ocupar-se de assuntos espirituais para doutrinar enfaticamente a respeito de
questões climáticas, econômicas, políticas, culturais… Já não se trata
mais de gerar santos para o Céu, mas de formar militantes ou “bons cidadãos”,
por assim dizer, para causas humanitárias neste mundo. Aqui estaria a nova
santidade, vivida e encarnada no meio do povo. O modelo deixa de ser Santa
Teresinha e passa a ser Greta Thunberg. Não à toa as modernas biografias
de santos procuram despojá-los de sua quase toda vida espiritual para
engajá-los em causas sociais, a fim de que pareçam “mais humanos”.
Ou homens interiores, ou nada
Se esse quadro parece
estereotipado, vale lembrar uma constatação não tão antiga do Papa Bento XVI:
“Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as
consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé,
considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária”. Na verdade,
julga-se a vida interior como um pressuposto que se pode deixar para depois,
mas “um tal pressuposto não só deixou de existir”, lamentava o Papa na época,
como “frequentemente acaba até negado” (Porta Fidei, 2). Inevitavelmente, se a
Igreja se rebaixa à condição de uma ONG para dar mais atenção a assuntos
temporais que aos espirituais, ela mesma nega sua condição de mediadora entre
Deus e os homens, como Corpo místico de Cristo, para se converter em algo irrelevante
do ponto de vista da fé. Os homens entendem que não precisam dela, a não ser
para projetos sociais, políticos e culturais.
Uma sociedade fundada nas
paixões do homem exterior, no entanto, jamais poderá resolver eficazmente
qualquer tipo de conflito social, político e cultural. Abandonado às más
inclinações da concupiscência, o homem não pode, sem o auxílio da graça, ser
fiel a seus compromissos nem enxergar com clareza a raiz de seus problemas, a
fim de dirimi-los com denodo e honestidade. A história nos mostra, pelo
contrário, como homens guiados exclusivamente pelas paixões terminaram escravos
de acordos espúrios e responsáveis por soluções imorais e desumanas de dilemas
sociais.
Ou voltamos a cultivar a
graça santificante, ou não teremos mais nada que cultivar.
A falácia esconde-se aqui na
falsa contraposição entre “marginalizar” e “incluir”. Para os adeptos da nova
santidade, pregar sobre as promessas batismais, a graça santificante e o pecado
é um moralismo excludente, por apresentar a santidade como ideal impraticável e
desumano. Para eles, “valorizar” a vida como um todo e relativizar a gravidade
do pecado são o meio para fugir da lógica da marginalização à da inclusão. Eis
aí a Igreja acolhedora de homossexuais não arrependidos, das “novas famílias”,
de crentes e não crentes etc., uma Igreja, enfim, livre e libertadora de todos
os preconceitos e opressões. Sem dúvida, a imagem parece algo realmente
maravilhoso.
A verdade, porém, é que a suposta
inclusão exclui da participação mais importante: a da vida
divina. As almas em pecado acabam marginalizadas da graça santificante e da
oportunidade de cumprir sua vocação batismal. O papel da Igreja é, sim, o de
incluir, mas na intimidade da Trindade santa, ajudando as almas a libertar-se
do pecado e encontrar a paz da filiação divina. Só assim, estando em amizade
com Deus em seu interior e com os outros à sua volta, o homem pode ordenar
integralmente a vida. Os verdadeiros humanitários são os santos porque
amam a Deus em primeiro lugar, guardam com esmero a graça santificante e se
preocupam com o que há de mais sagrado e humano nos homens: a alma. Foi por
preocupar-se em formar homens interiores, homens santos, que a Igreja deu à
civilização a estirpe mais elevada de homens dignos, como dizia Santo
Agostinho:
Os que dizem que a doutrina de
Cristo é contrária ao bem do Estado dêem-nos um exército de soldados tais como
os faz a doutrina de Cristo; dêem-nos tais governadores de províncias, tais
maridos, tais esposas, tais pais, tais filhos, tais mestres, tais servos, tais
reis, tais juízes, tais contribuintes, enfim, e agentes do fisco tais como os
quer a doutrina cristã! E então ousem ainda dizer que ela é contrária ao
Estado! Muito antes, porém, não hesitem em confessar que ela é uma grande
salvaguarda para o Estado quando é seguida (Epist. 138 ad Marcellinum II
15).
É forçoso admitir que a afirmação
do grande Doutor da Igreja não corresponde mais à realidade atual, não porque a
doutrina cristã tenha perdido a eficácia santificadora, mas porque os homens de
Igreja a abandonaram para seguir “todo sopro de doutrina”, o “capricho da
malignidade dos homens e de seus artifícios enganadores” (Ef 4,
11-16). Triste e lamentável.
Ou voltamos a cultivar a graça
santificante, ou não teremos mais nada que cultivar.
Notas
- Sobre esse tema, Ratzinger diz o seguinte em seu
livro sobre Escatologia: “Expressão eloquente da celeridade
desse processo é o fato de que, apenas um ano depois de concluído o
Concílio, a publicação do Catecismo holandês já havia
deixado para trás de si a doutrina da imortalidade da alma, pondo em seu
lugar uma (notavelmente obscura) antropologia dos graus da ressurreição.
De fato, o missal de Paulo VI só se atreve a falar da alma aqui e ali, e
ainda assim de maneira tímida, evitando ao máximo qualquer menção à ideia.
Já o ritual alemão de exéquias, até onde eu posso ver, obliterou o tema
por completo” (2019, pp. 267-268).
- Aqui temos um exemplo de como algumas afirmações
conciliares, tomadas isoladamente, servem de base para opções teológicas
de partidários de novas ideias que, no mais das vezes, contradizem a
Tradição da Igreja e a própria intenção dos Padres conciliares.
Pela Equipe Christo
Nihil Praeponere
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