Comemoração da Lança e dos Cravos de Nosso Senhor Jesus Cristo
Unus militum lancea latus eius aperuit, et continuo
exivit sanguis et aqua – “Um dos soldados abriu-Lhe o lado com uma lança, e
imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19, 34)
Sumário. Sendo o coração um dos primários
órgãos da vida, claro está que tem parte principal nos afetos do homem, tanto
nos bons como nos maus. Exatamente para sarar esta raiz viciada dos pecados,
quis Jesus Cristo que seu Coração fosse traspassado pela lança, assim como
pouco antes, para expiar a culpa de Adão em estender a mão ao fruto vedado, e
para reparar os abusos da liberdade, quis que as mãos e os pés lhe fossem
traspassados pelos cravos. Ó inventos admiráveis do amor de Deus! E nós não
amaremos?
I. Reflete um devoto escritor que na Paixão de Jesus
Cristo tudo foi excesso assombroso. Hebreus e Gentios, sacerdotes e seculares,
todos juntos conspiraram para fazê-Lo, como o predissera Isaías, o homem de
dores e de desprezos. Causa horror a consideração do complexo de maus tratos e
injúrias que fizeram Jesus sofrer em menos da metade de um dia, desde a captura
até à morte. Mas quem não esperaria que ao menos depois da morte teriam deixado
de ultrajá-Lo? Todavia não sucedeu assim.
Refere São João, que os Judeus, para não deixarem os corpos
na cruz durante o sábado de Páscoa, pediram a Pilatos que mandasse quebrar as
pernas aos supliciados e que os fizessem descer da cruz (1). Eis que Maria,
enquanto está chorando a morte do Filho, vê alguns homens, armados de barras de
ferro, que se avizinham de Jesus. À tal vista, primeiramente tremeu de espanto,
depois disse assim, como medita São Boaventura: Parai; ah! Meu Filho já está
morto! Deixai de o injuriar e deixai também de me atormentar mais a mim, sua
pobre Mãe! Mas, enquanto está assim falando, vê, ó Deus! Um soldado que vibra
com ímpeto uma lança e com ela abre o lado de Jesus: Unus militum lancea
latus eius aperuit.
A esse golpe tremeu a cruz, o Coração de Jesus ficou
dividido e saiu sangue e água. Não havia mais sangue além daquelas gotas
restantes, que o Salvador também quis derramar, para nos fazer entender que não
tinha mais sangue para nos dar. A injúria daquela lançada foi de Jesus, mas a
dor foi toda de Maria Santíssima.
Minha alma, aproxima-te enternecida da cruz, une as tuas
penas com as de tua querida Mãe e prostra-te assim aos pés do Senhor, a fim de
que corra sobre ti esse sangue divino.
II. Sendo o coração um dos primários órgãos e como
que princípio da vida, claro está que ele tem parte principal nos afetos do
homem, segundo o que está escrito: Do coração saem os maus pensamentos, os
homicídios, os furtos e as maledicências (2). Foi exatamente para sarar esta
raiz viciada dos pecados, que Jesus quis ser ferido em seu sacratíssimo
Coração, assim como pouco antes, para expiar a culpa de Adão em estender a mão
para o fruto vedado, e para reparar os abusos da liberdade humana, quis que Lhe
fossem traspassadas as mãos e os pés. ― Por isso é que a Igreja não hesita em
venerar a Lança e os Cravos que tiveram a ventura de ser tintos com o sangue do
Senhor. No Ofício, em sua honra exclama saudando-os: “A perfídia judaica
escolheu-vos para instrumentos de perversidade; mas o Deus do céu vos
transformou em ministros de graça. Pelo que das chagas que abristes no corpo
sacrossanto de Jesus, como de outras tantas fontes, nos brotam as graças
celestes” (3).
Meu irmão, unamos os nossos afetos aos de nossa boa Mãe, a
Igreja. Peçamos ao Senhor perdão do abuso que nós também temos feito da
liberdade. Roguemos-Lhe que virando contra nós aqueles cravos e aquela lança,
tire a vingança das ofensas que Lhe fizemos, ferindo-nos o coração, as mãos e
os pés. Os pés, para que de hoje em diante sejam impotentes em nos expor às
ocasiões perigosas; as mãos, para que deixem de praticar o mal; o coração, para
que, livre de todo apego desordenado às criaturas, arda sempre de amor divino: Omnisque
corde e saucio profanus ardor exeat (4).
Eis o que Vos peço, ó meu Deus! “A Vós, que na fraqueza
da natureza humana quisestes ser traspassado com cravos e ferido pela lança,
suplico-Vos, concedei-me, que venerando na terra a memória desses cravos e
dessa lança, eu vá depois alegrar-me no céu pelo glorioso triunfo de vossa
vitória” (5). Fazei-o por amor do Coração aflitíssimo de Maria.
Referências:
(1) Jo 19, 31
(2) Mt 15, 19
(3) Hymn. Matut.
(4) Hymn. Laud.
(5) Or. festi. curr.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias
e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa
Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 311-313)
0 comments