Quarta-feira de Cinzas: A lembrança da morte e o jejum quaresmal
Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris –
“Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de tornar” (Gn 3, 19)
Sumário. Os insensatos que não creem na
vida futura estimulam-se com o pensamento da morte a passarem bem a vida. De
maneira bem diferente devemos nós proceder, os que sabemos pela fé que a alma
sobrevive ao corpo. Nós, lembrando-nos de que em breve temos que morrer,
devemos cuidar da nossa eternidade e por meio de oração e penitência aplacar a
justiça divina. É com este intuito que a Igreja, depois de por as cinzas sobre
a cabeça, nos ordena o jejum da Quaresma.
I. Para compreendermos em toda a sua extensão o
sentido destas palavras, imaginemos ver uma pessoa que acaba de exalar o último
suspiro. Ó Deus, a cada um que vê este corpo, inspira nojo e horror. Não
passaram bem nem vinte e quatro horas depois que aquela pessoa morreu e já o
mau cheiro se faz sentir. É preciso abrir as janelas e queimar bastante
incenso, a fim de que o fedor não infeccione a casa toda. Os parentes com
pressa mandam levar o defunto para fora da casa e entregar à terra.
Metido que foi o cadáver na sepultura, vai se tornando
amarelo e depois preto. Em seguida, aparece em todos os membros uma lanugem
branca e repelente, donde sai um pus infecto que corre pela terra e donde se
gera uma multidão de vermes. Os ratos veem também procurar o pasto neste
cadáver, roendo-o uns por fora, ao passo que outros entram na boca e nas entranhas.
Despegam-se e caem as faces, os lábios, os cabelos; escarnam-se os braços e as
pernas apodrecidas, e afinal os vermes, depois de consumidas todas as carnes,
consomem-se a si próprios. E deste corpo só restará um esqueleto fétido, que
com o tempo se divide, ficando reduzido a um punhado de pó.
Eis aí o que é o homem, considerado como criatura mortal.
Eis aí o estado a que tu também, meu irmão, serás, talvez em breve, reduzido:
um punhado de pó fedorento. Nada importa ser alguém moço ou velho, são ou
enfermo: a todos caberá a mesma sorte, o que a Igreja recorda pondo as cinzas
bentas indistintamente sobre a cabeça de todos: Memento homo, quia pulvis es
et in pulverem reverteris — “Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te hás de
tornar”.
II. Os insensatos que não creem na vida futura e têm
as verdades eternas por fábulas, estimulam-se, com a lembrança da morte, a
levar vida folgada e a gozarem. Comedamus et bibamus; cras enim moriemur (1)
— “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. De maneira bem diferente,
porém, diz Santo Agostinho, deve proceder o cristão, que pela fé sabe que a
alma sobrevive ao corpo e que, depois da morte deste, terá de dar contas rigorosíssimas de tudo quanto
tiver feito. — O cristão, que se lembra que em breve deverá deixar o mundo,
cuidará da sua eternidade e procurará aplacar a justiça divina com penitências
e orações. É por isso exatamente que a Igreja, depois de nos ter posto as
cinzas sobre a cabeça, ordena a seus ministros que notifiquem aos fiéis o jejum
quaresmal: Canite tuba in Sion: sanctificate ieiunium (2) — “Fazei soar a
trombeta em Sião, santificai o jejum”.
Conformemo-nos, portanto, com as intenções de nossa boa Mãe;
e como ela mesma o ordena, sejamos no santo tempo da Quaresma “mais sóbrios
em palavras, na comida, na bebida, no sono, nos divertimentos” (3); e, o
que é mais necessário, afastemo-nos mais de toda a culpa por meio de uma vida
recolhida e consagrada à oração, porquanto, no dizer de São Leão, “sem
proveito se subtrai o alimento ao corpo, se o espírito não se afasta mais da
iniquidade”.
Ó meu amabilíssimo Redentor, consenti que eu una a minha
salutar abstinência com a que Vós com tanto rigor por mim quisestes observar no
deserto. Consenti também que nesta união eu a ofereça a vosso Pai Divino, como
protestação de minha obediência à Igreja, em desconto de meus pecados, pela
conversão dos pecadores e em sufrágio das almas santas do purgatório. Tenho
intenção de renovar esta oferta todos os dias da Quaresma. “Vós, porém, ó
Senhor, concedei-me a graça de começar este solene jejum com devida piedade e
de continuá-lo com devoção constante” (4), a fim de que, chegada a Páscoa,
depois de ter ressurgido convosco para a vida da graça, seja digno se
ressuscitar também para a vida da glória. Fazei-o pelo amor de Maria
Santíssima.
Referências:
(1) Is 22, 13
(2) Joel 2, 15
(3) Hymn. Quadr.
(4) Or. Fer. curr.
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