Francisco e a revolução da misericórdia: um balanço teológico de doze anos de pontificado — Parte 2

O Papa Francisco abre a porta santa para o Jubileu da Misericórdia, em 13 de dezembro de 2015O Papa Francisco abre a porta santa para o Jubileu da Misericórdia, em 13 de dezembro de 2015.

A Misericórdia como Reforma: o Eixo Teológico do Pontificado de Francisco

Entramos agora, caro leitor, no núcleo vital deste estudo teológico sobre o pontificado do Papa Francisco: a misericórdia como princípio que move a Igreja e reorienta a missão. Os capítulos precedentes traçaram o panorama mais amplo — a matriz latino-americana, a “teologia do povo”, a crítica à globalização, a redefinição da missão — e agora dirigimos o foco para aquilo que será o fio condutor teológico de todas essas dinâmicas: a misericórdia.

Neste capítulo, investigaremos como Francisco toma a misericórdia não como mera virtude isolada, mas como estrutura interpretativa, programa de reforma e linguagem da presença eclesial no mundo. Veremos como ele remete ao Concílio Vaticano II para legitimar essa ênfase, mas também como essa leitura provoca tensões na tradição; como a missão da Igreja é redesenhada em função da compaixão, e quais os impactos dessa mudança no espírito da instituição e da doutrina.

Mais do que expor os textos e documentos papais, este capítulo propõe uma leitura crítica: quais são as implicações teológicas de afirmar que a misericórdia precede a norma? Como equacionar a justiça de Deus, a verdade revelada e a acolhida pastoral num mundo em crise? Onde a Igreja está chamada a caminhar firme na fidelidade à tradição e, ao mesmo tempo, ousar a reforma necessária?

À medida que avança, o leitor será convidado a discernir: onde a misericórdia ilumina e renova — e onde ela, talvez, desafia fronteiras que até hoje sustentaram a fé cristã. Esta não é uma reflexão simplista nem um enunciado de soluções prontas — é um convite à “audácia da ternura”, de contemplar Deus no próximo, de perceber que a reforma da Igreja começa, muitas vezes, por reconhecer que a graça não nos espera no topo, mas nos confins.

Que este capítulo nos ajude a entrar nas profundezas da proposta franciscana com os olhos do contemplativo e a coragem do missionário: que possamos olhar para a misericórdia como fonte, rumo e meta da teologia vivida — e perguntar, com sinceridade, o que isso implica para a Igreja de ontem, de hoje e de amanhã.

1. A misericórdia como princípio hermenêutico

No coração do pontificado de Francisco pulsa uma palavra-síntese: misericórdia. Não é um adorno espiritual, mas o núcleo que reconfigura toda a sua leitura do Evangelho, da Igreja e do homem contemporâneo. Desde a Evangelii Gaudium, Francisco propõe que a missão eclesial passe por uma conversão pastoral, em que a misericórdia se torne o olhar de Cristo estendido sobre as feridas do mundo. Essa ênfase, embora profundamente evangélica, representa um deslocamento de eixo: da verdade proclamada para a proximidade compassiva, do anúncio doutrinal para o testemunho relacional.

Na Misericordiæ Vultus, o Papa apresenta a misericórdia como “a própria identidade de Deus”. Essa afirmação não é nova, mas em Francisco adquire uma tonalidade pastoral inédita: a misericórdia deixa de ser apenas atributo divino e torna-se método pastoral. O resultado é uma teologia que tende a ler toda a Revelação sob o prisma da inclusão. O rosto de Cristo misericordioso substitui, em certo sentido, a figura do Cristo juiz; o gesto que acolhe precede a palavra que corrige.

Essa inversão de prioridades redefine a própria compreensão de justiça divina. Se Bento XVI ainda insistia que o amor sem verdade se dissolve em sentimentalismo, Francisco aposta no contrário: que a verdade sem misericórdia se torna estéril e violenta. A tensão entre ambas permanece, mas o pêndulo se moveu. O centro agora é o encontro — não o enunciado.

O problema, para alguns teólogos, está em que essa hermenêutica da misericórdia, ao privilegiar a compaixão sobre a conversão, dilui a dimensão trágica do pecado. O mal, que antes era entendido como ruptura da comunhão com Deus, passa a ser visto sobretudo como ferida social. A salvação, consequentemente, assume contornos de reconciliação humana antes que de redenção sobrenatural.

Contudo, seria injusto reduzir a visão de Francisco a um humanismo sociológico. Sua teologia da misericórdia nasce da experiência espiritual de quem contempla Deus nas periferias — não como ausência de doutrina, mas como transbordamento de amor. A pergunta central do seu pontificado parece ser: como falar de Deus num mundo ferido? Sua resposta é simples e radical: começando por cuidar das feridas.

2. O Concílio Vaticano II como matriz reinterpretada

Francisco não inventa o tema da misericórdia; ele o herda do Vaticano II. Ao citar João XXIII e Paulo VI, ele se inscreve deliberadamente na linha da aggiornamento: a Igreja como mãe compassiva, não como tribunal. Mas a forma como ele lê o Concílio é seletiva. Retém o impulso pastoral, mas subtrai-lhe parte da densidade dogmática.

Em Misericordiæ Vultus, o Papa afirma que Deus “se dá por inteiro, gratuitamente, sem pedir nada em troca”. A frase soa bela, mas suscita questões: onde fica a resposta humana à graça? Onde está a exigência da conversão? Essa assimetria revela uma tendência — o esvaziamento do drama soteriológico em favor de uma teologia do dom unilateral.

O Cristo de Francisco é o Bom Samaritano, não o Verbo que julga. É o Deus que se inclina, não o que convoca à metanoia. Assim, a misericórdia se torna não apenas o remédio para o pecado, mas o próprio modo de interpretar a relação de Deus com o mundo. O problema, para os críticos, é que a misericórdia sem a verdade deixa de ser medicina e se torna anestesia.

Há nisso um gesto típico de Bergoglio: não romper, mas deslocar. Ele não nega a tradição, mas a reposiciona. O Vaticano II, que para Paulo VI ainda era um evento equilibrado entre fidelidade e abertura, para Francisco é um processo inacabado que precisa ser “libertado da rigidez doutrinal” que o sucedeu. Sua misericórdia é, em última instância, a hermenêutica definitiva do Concílio.

Assim, o Papa argentino reinterpreta a pastoral conciliar como missão de reconciliação universal. Não é apenas a Igreja que deve converter-se; é a própria teologia que precisa “tornar-se misericordiosa”. O risco — e também o encanto — dessa proposta está justamente aí: ao tentar tornar Deus mais acessível, corre-se o perigo de reduzi-lo à medida humana.

3. A missão redefinida: da salvação à promoção integral

A consequência natural dessa hermenêutica é a redefinição da missão. Em Evangelii Gaudium, Francisco escreve que todo cristão deve “preocupar-se com a construção de um mundo melhor”. É o deslocamento da finalidade da Igreja: de salvar almas para transformar estruturas.

A pastoral deixa de ser um itinerário de santificação e torna-se um projeto de inclusão social. O Evangelho é lido como código de convivência e não apenas como anúncio escatológico. A teologia da salvação cede espaço à teologia do desenvolvimento humano integral. Trata-se de uma “Igreja em saída”, mas que muitas vezes parece esquecer para onde sai.

Essa virada, embora inspiradora, tem um custo teológico. Ao privilegiar a promoção do homem, corre-se o risco de secularizar a missão da Igreja, convertendo-a numa ONG espiritual. Francisco tenta evitar esse risco com insistência na dimensão espiritual do serviço, mas o desequilíbrio é perceptível.

Sua ênfase nos direitos dos povos, na justiça social e na ecologia integral faz parte desse horizonte. Em nome da misericórdia, a Igreja deve lutar contra a desigualdade, a exclusão e a guerra. É uma pastoral de ação. Mas, enquanto o zelo missionário de outros tempos visava converter, o zelo misericordioso de Francisco visa integrar.

Por isso, muitos veem nesse pontificado um cristianismo de horizontes baixos: mais voltado ao humano que ao divino, mais à comunhão horizontal que à verticalidade da graça. Mas talvez essa seja precisamente sua aposta: reintroduzir o Evangelho num mundo pós-cristão, começando pela bondade antes que pela dogmática.

4. A mística da reforma: espiritualidade da misericórdia

A reforma de Francisco não é meramente estrutural; é espiritual. O cardeal Maradiaga dizia que “toda mudança na Igreja exige uma mística”. Essa mística, para Francisco, é a misericórdia. Ela se traduz em gestos: abraços, telefonemas, visitas a prisões. Cada gesto é um microdogma — uma encarnação pastoral da compaixão.

Essa espiritualidade se manifesta sobretudo no trato com os marginalizados: migrantes, divorciados recasados, pessoas LGBTQIA+. O Sínodo sobre a Família e a exortação Amoris Lætitia exemplificam esse movimento. A doutrina permanece no papel, mas a pastoral flexibiliza seus contornos. É a “lei da gradualidade” substituindo a “lei da norma”.

O princípio é simples: a misericórdia deve preceder o julgamento. A confissão se transforma em diálogo, o discernimento substitui a condenação. A Igreja, que antes apontava caminhos, agora aprende a caminhar junto.

Porém, há um ponto cego nessa mística. Quando a misericórdia se torna critério absoluto, ela corre o risco de dissolver toda normatividade. O “não julgueis” é interpretado como “não distingais”. Assim, o amor pastoral ameaça engolir a clareza doutrinal.

Ainda assim, há algo profundamente evangélico nessa espiritualidade. Francisco recorda à Igreja que a ortodoxia sem caridade é apenas ideologia piedosa. Sua teologia é mística não por falta de rigor, mas por excesso de humanidade.

5. A misericórdia como princípio normativo: o caso Fiducia supplicans

A Declaração Fiducia supplicans de 2023 é o ápice dessa lógica. Ao autorizar bênçãos não rituais para casais homossexuais, o Papa não muda a doutrina formal — mas muda a sua aplicação. A misericórdia torna-se critério de discernimento pastoral acima da norma canônica.

Esse gesto não é isolado. Ele expressa o projeto teológico de Francisco: uma Igreja inclusiva, que acolhe antes de ensinar. A bênção é o símbolo do novo paradigma: Deus abençoa não o mérito, mas a busca.

Para os críticos, trata-se de um passo rumo ao relativismo moral; para os simpatizantes, é a mais pura tradução do Evangelho vivido. A controvérsia, no fundo, é hermenêutica: o que significa abençoar? A misericórdia redefine os termos.

No plano simbólico, Fiducia supplicans é um manifesto. Afirma que a Igreja não teme as ambiguidades da história e prefere correr o risco do escândalo ao da exclusão. É a “misericórdia em estado puro”: inclusiva, pastoral, aberta — e, por isso mesmo, teologicamente incômoda.

Essa decisão marca um ponto sem retorno: o primado da pastoral sobre a doutrina. A misericórdia torna-se o novo magistério, não como conceito abstrato, mas como práxis eclesial.

6. A fraternidade universal: horizonte escatológico da misericórdia

O percurso de Francisco desemboca naturalmente na ideia de fraternidade universal, expressa em Fratelli Tutti. A misericórdia se expande em política, economia e cultura. Já não é virtude individual, mas princípio civilizacional.

A fraternidade aqui não se limita aos cristãos: é aberta a todas as religiões e mesmo aos não crentes. Francisco vê na misericórdia um denominador comum entre o cristianismo, o judaísmo e o islã — uma ponte espiritual global.

É um projeto ousado: substituir a lógica da identidade pela da proximidade. A Igreja, nesse cenário, deixa de ser fortaleza da verdade e se torna hospital de campanha, aberto a todos os povos.

O risco é claro: quando tudo é incluído, a identidade pode se dissolver. Mas o mérito também é real: quando a fé se torna diálogo, a Igreja volta a ter voz no mundo secular. A misericórdia, portanto, é ao mesmo tempo seu método e sua mensagem.

No fim, o pontificado de Francisco talvez seja lembrado menos por suas reformas estruturais e mais por ter reconfigurado o rosto da Igreja. Sob sua direção, o cristianismo se torna novamente linguagem do coração — uma teologia que se ajoelha antes de falar.

Por Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância

Continua...

Nota

Este capítulo faz parte de um esforço mais amplo de balanço teológico do pontificado de Francisco — não uma simples crítica, nem uma defesa cega, mas um discernimento. Procuramos aqui compreender o sentido profundo das transformações vividas pela Igreja sob sua direção: o lugar da misericórdia, a redefinição da missão, o novo rosto da pastoral e as tensões entre tradição e reforma.

Escrevemos na convicção de que todo pontificado é um capítulo na longa história da Igreja, e que o Espírito Santo age não apenas nas certezas, mas também nas provações. O olhar que propomos é o de quem ama a Igreja e, por isso mesmo, deseja vê-la sempre fiel à verdade que a fundou.

Este balanço não pretende encerrar o debate, mas abrir espaço para o diálogo, com serenidade e coragem. A herança de Francisco ainda está em formação, e cabe a nós, católicos atentos à Tradição e à voz dos tempos, discernir o que nela é sopro de Deus e o que talvez seja sombra da modernidade.

Convido, pois, cada leitor a ler com espírito orante e mente lúcida. Não se trata de julgar um Papa, mas de entender um processo. A misericórdia, como veremos, pode ser tanto luz de renovação quanto espelho que nos obriga a ver as nossas próprias contradições.

Ao fim, que este estudo desperte em todos o desejo de uma fé mais profunda, de uma Igreja mais santa e de uma reflexão mais honesta — porque amar a Igreja é também querer compreendê-la.