Minha cela tem endereço no mundo

Às vezes, quando leio o número 10 da Regra do Carmo — “permaneça cada um em sua cela…” — penso: que cela? Moro em uma casa confortável, vizinho com som alto, cachorro latindo, filho pedindo atenção. Se for depender de silêncio absoluto, nunca vou ser carmelita. Mas aí me dou conta: a Regra não me pede paredes de pedra, pede um coração em estado de oração.

Minha cela pode ser a cozinha, quando corto legumes rezando uma Ave-Maria. Pode ser o ônibus lotado, quando deixo de reclamar e ofereço o aperto como sacrifício escondido. Pode ser a cama, quando deito cansado, mas antes de dormir ainda digo: “Senhor, eu confio em Ti”. A cela, para nós terceiros carmelitas, é esse espaço interior que acompanha o corre-corre do mundo.

E é curioso como a Regra é realista: “a não ser que esteja ocupado em outros justificados afazeres”. Olha aí, perfeito para quem tem boletos, reuniões, roupa no varal e idoso em casa. Deus não nos pede fuga da vida, mas presença n’Ele no meio da vida. O trabalho, a rotina, o barulho — tudo pode ser chão sagrado, desde que eu não desligue o coração da oração.

Mas aqui está o ponto: se eu vivo essa “cela interior”, não é só por mim. A Regra sempre insiste: a oração pessoal fortalece a vida fraterna. Cada terço rezado escondido, cada silêncio oferecido no trânsito, cada leitura da Palavra feita no intervalo — tudo isso, de modo invisível, sustenta também meus irmãos da Ordem Terceira. Somos um Carmelo espalhado, cada um na sua cela-mundo, mas unidos no mesmo espírito.

E sabe qual é a parte bonita? Descobrir que, mesmo sem muros de mosteiro, temos muros invisíveis que nos cercam: a tradição carmelitana, a vida sacramental da Igreja, a comunhão com os irmãos. Nossa cela é portátil, mas firme. É discreta, mas fecunda. É frágil, mas habitada por Deus.

No fundo, o número 10 nos desafia a não romantizar a vida religiosa, mas a encarnar sua essência no concreto da vida secular. A cela é o coração, o altar é o cotidiano, e a oração contínua é possível até no meio da bagunça. Basta vigiar.

Por seu Irmão Carmelita Secular da Antiga Observância B.