Entre a Antiga Aliança e a Nova: Teologia, Ruptura e as Quatro Causas da Crise Eclesial Atual

Introdução: Entre a Promessa e a Ruptura

A crise eclesial contemporânea não caiu do céu. Ela é o resultado acumulado de décadas — talvez séculos — de fermentação teológica, política e pastoral. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a revelação dos horrores do Holocausto, a Igreja Católica buscou uma reconciliação com o judaísmo, um movimento que culminou na declaração Nostra Ætate (1965). Embora animada por intenções nobres, essa virada abriu espaço para mudanças doutrinais que poucos, na época, imaginaram teriam consequências tão profundas. O que parecia uma tentativa de curar feridas históricas acabou gerando novas: confusão teológica, ambiguidade pastoral e repercussões geopolíticas intensas.

O presente artigo continua as reflexões desenvolvidas em textos anteriores, como “Entre a Promessa e a Ruptura” e “A Grande Farsa Pós-Guerra”. Aqui, usando as quatro causas aristotélicas — formal, material, eficiente e final —, aprofundamos o exame teológico sobre a suposta vigência da Antiga Aliança e suas implicações para a fé católica, além de suas ressonâncias diretas no atual conflito no Oriente Médio.

Causa Formal: A Nova Hermenêutica de Nostra Ætate

A Nostra Ætate representa, formalmente, uma mudança sísmica no modo como a Igreja interpreta suas relações com o judaísmo. Até então, a tradição católica afirmava que Cristo havia cumprido e superado a Lei mosaica, estabelecendo uma Nova Aliança (Hb 8,13). A Antiga Aliança não era simplesmente anulada, mas transformada e levada à plenitude. No entanto, ao afirmar que “os judeus permanecem caros a Deus” e evitar declarar explicitamente a revogação da Antiga Aliança, Nostra Ætate abriu espaço para leituras ambíguas — leituras que sugerem uma coexistência paralela de alianças, como se a Antiga continuasse válida para os judeus, enquanto a Nova vigorasse para os gentios.

Esse deslocamento formal não é neutro. Ele mina a unidade salvífica em Cristo, minando a ideia de que há um único mediador entre Deus e os homens (1Tm 2,5). A cruz perde sua centralidade, tornando-se apenas uma opção entre várias, e não o eixo indispensável da salvação. Para a eclesiologia, o dano é profundo: a Igreja deixa de ser o novo Israel, o povo reunido a partir da plenitude das promessas, e passa a ser apenas uma comunidade entre muitas, diluindo seu caráter único.

A hermenêutica pós-Nostra Ætate também enfraquece a missão evangelizadora. Afinal, se os judeus já estão em aliança com Deus, para que evangelizá-los? Esse raciocínio acaba alimentando uma lógica de relativismo religioso, onde o anúncio de Cristo é opcional, não essencial. Isso atinge diretamente a identidade da Igreja como sacramento universal de salvação (Lumen Gentium 48), gerando paralisia pastoral e desorientação doutrinal.

Causa Material: A Reconfiguração Pós-Holocausto

Materialmente, a transformação foi impulsionada pelo trauma moral do Holocausto. O horror do extermínio em massa dos judeus europeus gerou um senso agudo de culpa e urgência moral entre líderes eclesiásticos. Corrigir os erros do passado — inclusive o antissemitismo enraizado em setores do cristianismo — tornou-se uma prioridade. Até aí, nada mais justo. Contudo, esse impulso legítimo acabou instrumentalizado por certos círculos teológicos e diplomáticos, que viram nele uma oportunidade para reformular a doutrina.

Encontros como o de Seelisberg (1947), liderados por figuras como Jules Isaac, questionaram a teologia da substituição (supersessionismo), que via a Igreja como o novo Povo de Deus. A revisão dessa doutrina ganhou força, apresentando o judaísmo rabínico como uma forma legítima de aliança com Deus, mesmo rejeitando explicitamente o Cristo. Isso gerou uma teologia sentimentalista, marcada pelo emocionalismo, que cedeu mais ao apelo diplomático do que à clareza teológica.

Esse material novo trouxe consequências inesperadas. A teologia perdeu musculatura, tornando-se anêmica diante de temas essenciais como pecado, redenção e missão. No lugar de uma fé vigorosa, com raízes na Revelação e nos Padres da Igreja, entrou uma narrativa diluída, incapaz de sustentar a identidade católica em meio à pressão cultural e geopolítica. A tentativa de superar um passado vergonhoso resultou, ironicamente, na criação de uma teologia amnésica — uma que esquece quem somos, de onde viemos e para onde deveríamos caminhar.

Causa Eficiente: Os Protagonistas da Ruptura

Os protagonistas dessa ruptura não foram apenas documentos conciliares, mas também figuras de carne e osso. João Paulo II, no famoso discurso de Mainz (1980), afirmou que a Antiga Aliança “nunca foi revogada por Deus”. Essa frase ecoou por décadas, sendo interpretada — e, muitas vezes, mal interpretada — como um reconhecimento da vigência eterna da Aliança mosaica. Bento XVI, por sua vez, aprofundou essa linha, sugerindo que os judeus não precisariam se converter explicitamente para alcançar a salvação, porque já estariam em caminho de fidelidade ao Deus de Israel.

Esses papas, embora nunca tenham formalmente abraçado uma “teologia das duas alianças”, deram sinais ambíguos. Seus gestos simbólicos, como visitas a sinagogas, discursos inter-religiosos e declarações diplomáticas, foram lidos como endossos tácitos de uma nova teologia. Mesmo quando pretendiam ser gestos de caridade e amizade, acabaram produzindo efeitos teológicos: alimentaram uma eclesiologia líquida, uma cristologia suavizada e uma soteriologia pluralista, mais preocupada com a coexistência pacífica do que com a verdade salvífica.

A partir desses protagonistas, vemos como a crise atual não nasceu apenas de textos, mas de práticas e discursos que moldaram a percepção global da fé. A ortodoxia doutrinal foi deixada de lado em nome de uma pastoral “inclusiva”, mas sem ancoragem sólida. E aqui está o perigo: sem clareza doutrinal, a caridade se dissolve em sentimentalismo vazio.

Causa Final: Diálogo ou Relativismo?

O objetivo final declarado dessas mudanças era o diálogo: construir pontes, superar feridas históricas, promover a reconciliação entre cristãos e judeus. Mas o preço foi altíssimo. Uma Igreja que hesita em afirmar que Cristo é o único Salvador perde seu eixo e se torna vulnerável a ideologias, tanto religiosas quanto políticas. Quando o dogma é relativizado, o resultado é uma Igreja sem profecia, sem coragem e sem rumo.

No campo geopolítico, essa mudança teológica repercute diretamente. A legitimação do judaísmo rabínico e, por extensão, do sionismo moderno, transforma a promessa bíblica feita a Israel num cheque em branco para justificar ações políticas, incluindo o massacre de civis em Gaza. O uso instrumental das Escrituras para justificar conflitos armados é uma distorção teológica grave, que desonra tanto a tradição cristã quanto o próprio texto bíblico. Afinal, se a Antiga Aliança ainda está em vigor, não seriam também válidas as promessas territoriais feitas ao Israel terreno? Essa lógica alimenta uma teologização perversa do conflito político.

A verdadeira paz não virá do relativismo, mas da verdade. E a verdade, para a fé católica, tem um nome: Jesus Cristo. Negar isso em nome de uma diplomacia vazia não só enfraquece a Igreja, como a torna cúmplice moral de injustiças históricas.

A Teologia Reversa e a Crise em Gaza

Um dos efeitos mais perigosos da legitimação religiosa do Estado de Israel é a inversão teológica: em vez de Israel espiritual ser o modelo, retoma-se Israel étnico como chave de leitura. Essa teologia reversa não apenas distorce a tradição cristã, como também legitima políticas de ocupação, apartheid e violência. O sofrimento do povo palestino — em grande parte cristão e muçulmano — é relativizado, ignorado ou, pior, justificado em nome de uma “aliança eterna” que, no fundo, não corresponde à revelação cristã.

Teólogos como Jean-Michel Garrigues e pensadores judeus como Jacob Neusner já alertaram: essa fusão entre promessa bíblica e projeto político é uma bomba-relógio. Ela alimenta um messianismo político, que confunde reino de Deus com poder estatal, e fé com nacionalismo. O resultado? Um conflito interminável, onde a religião é usada como arma de guerra.

Para a Igreja, a consequência espiritual é devastadora. Perde-se o foco na universalidade da salvação, na oferta de reconciliação para todos os povos. O Evangelho é instrumentalizado em disputas territoriais, quando deveria ser anúncio de libertação, justiça e paz. Retomar a clareza doutrinal aqui não é apenas um luxo teológico; é uma necessidade urgente para a credibilidade moral e espiritual da Igreja.

Considerações Finais: Para Onde Vamos?

As quatro causas aristotélicas nos mostram que a crise eclesial atual é profunda, estrutural e multifacetada. Não basta maquiagem pastoral ou retórica diplomática para enfrentá-la. É preciso um retorno robusto à ortodoxia, à clareza doutrinal e à coragem profética. Cristo não é uma possibilidade entre muitas: Ele é o cumprimento da Lei e dos Profetas, o único Salvador, o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6).

A Igreja não pode hesitar em afirmar que fora dela não há salvação ordinária. Isso não significa arrogância, mas fidelidade à missão recebida. O verdadeiro diálogo inter-religioso nasce da verdade, não do relativismo. E a verdadeira paz entre povos e nações só pode ser construída sobre a rocha da justiça, não sobre a areia movediça das ideologias.

O chamado para os católicos hoje é claro: recuperar a memória da fé, reafirmar as verdades perenes e resistir à tentação do pluralismo dissolvente. A hora não é de hesitação, mas de coragem. A paz verdadeira — entre religiões, povos e nações — não virá da diplomacia espiritual, mas do testemunho inabalável daquele que é o Príncipe da Paz: Jesus Cristo.

Rezemos pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana, e por Sua Santidade Leão XIV!

Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância

Referências

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PEQUENO TERCIÁRIO CARMELITA. Entre a Promessa e a Ruptura: As Quatro Causas da Crise Eclesial Pós-Conciliar. Blogue Terciário Carmelita, 2025. Disponível em: https://terciariocarmelita.blogspot.com/2025/05/entre-promessa-e-ruptura-as-quatro.html. Acesso em: 01 jun. 2025.