Entre a promessa e a ruptura: As quatro causas da Crise Eclesial Pós-Conciliar

Este artigo propõe uma análise histórico-teológica da crise contemporânea na Igreja Católica, tomando como chave interpretativa o modelo das quatro causas aristotélicas — formal, material, eficiente e final. Sustenta-se que o Concílio Vaticano II, em especial por meio da declaração Nostra Ætate, representa uma inflexão decisiva no magistério, operando uma mutação doutrinária de alcance estrutural. Tal mutação é aqui interpretada como a consolidação de uma nova teologia eclesial — o chamado “Catolicismo de Israel”.
Como contraponto, o estudo resgata a encíclica não promulgada Humani Generis Unitas (1938), enquanto hipótese contrafactual de resistência doutrinal, sugerindo que sua publicação poderia ter freado ou ao menos tensionado esse desvio de rota. O artigo busca oferecer uma moldura interpretativa sólida, enraizada em fontes históricas primárias e sustentada pela bibliografia acadêmica recente, à semelhança de abordagens já exploradas em trabalhos anteriores.
Introdução
A leitura tradicional do Concílio Vaticano II como um acontecimento meramente pastoral tornou-se, à luz dos fatos históricos e doutrinários, flagrantemente insuficiente. O que se operou a partir de 1965 foi algo mais do que uma renovação de métodos ou de linguagem: foi a consagração de uma nova matriz teológica, especialmente naquilo que concerne à relação da Igreja com o povo judeu. A declaração Nostra Ætate (1965) representa não apenas uma abertura diplomática, mas a promulgação de uma nova hermenêutica eclesiológica, cujas consequências ainda moldam o ethos católico contemporâneo.
Neste artigo, propomos uma chave de leitura baseada nas quatro
causas aristotélicas — formal, material, eficiente e final — como instrumento
para compreender com maior precisão as engrenagens da mudança. Tal abordagem
permite que se desvele a estrutura profunda da crise eclesial, que não emerge
do nada, mas se enraíza em décadas de reorientações ideológicas, disputas
internas e inflexões estratégicas do Magistério. A investigação que se segue,
portanto, não se propõe como mera denúncia, mas como uma arqueologia da
subversão doutrinária, traçando os nexos entre os acontecimentos, os agentes e
os textos que pavimentaram o caminho da ruptura.
Causa Formal: A Declaração Nostra Ætate
A causa formal da crise atual é a própria Nostra Ætate.
Promulgada no fim do Concílio Vaticano II, esta declaração rompe com a
linguagem tradicional da teologia católica em relação ao povo judeu. Afirma-se
que “a Igreja... repudia todas as perseguições contra os judeus, a qualquer
tempo e por qualquer pessoa” (NA, 4), mas também se declara que os judeus “continuam
sendo caros a Deus”.
Essa recusa tácita da doutrina da substituição da Antiga
pela Nova Aliança, defendida pela Tradição patrística durante séculos,
configura uma mudança substancial. Essa ideia, central ao catolicismo clássico,
sustentava que a Igreja é o “novo Israel”, sucessora da antiga aliança e
detentora do depósito da fé. Ao relativizar essa noção, Nostra Ætate
abre caminho para um paradigma teológico dualista, que trata o Judaísmo como
válido em si mesmo, não exigindo conversão.
Romano Amerio, em sua obra Iota Unum (1985), explica
que essa alteração não é apenas semântica, mas uma reestruturação formal da
identidade católica, com consequências profundas para a eclesiologia e a
doutrina da salvação. O documento apresenta uma ambiguidade calculada que
permite múltiplas interpretações, funcionando como um dispositivo
teológico-político que redefine o espaço religioso no pós-guerra.
Causa Material: A Doutrina do Holocausto
O pano de fundo material dessa reorientação doutrinária é a
chamada “doutrina do Holocausto”, que emerge da leitura revisionista da
história cristã proposta por intelectuais como Jules Isaac e Abraham Heschel.
Esta doutrina sustenta que a Igreja teria uma responsabilidade histórica pelo
antissemitismo europeu que culminou no genocídio nazista.
A audiência privada entre Isaac e João XXIII, em 1959,
representa um momento crucial: Isaac entregou ao Papa um dossiê detalhado,
expondo as raízes do antijudaísmo cristão e a necessidade de uma mudança
radical na abordagem eclesial. Segundo historiadores como John Connelly (2012)
e Susannah Heschel (2016), essa influência foi decisiva para a redação do texto
de Nostra Ætate.
Contudo, essa narrativa ignora aspectos complexos da
história do judaísmo e sua relação com o Cristianismo, além de minimizar os
elementos ideológicos e políticos que moldaram a memória do Holocausto. A
aceitação acrítica dessa doutrina como base para a reforma eclesial configura
uma instrumentalização da memória histórica para fins doutrinários, o que abre
espaço para debates profundos sobre a verdade, a justiça e a tradição.
Causa Eficiente: O Concílio Vaticano II
João XXIII compreendia que apenas um Concílio Ecumênico
poderia conferir autoridade magisterial suficiente para instituir mudanças de
tal magnitude. Ao convocar o Vaticano II em 1959, o Papa engajou um processo de
revisão estrutural do Magistério.
O Cardeal Augustin Bea, à frente do Secretariado para a
Unidade dos Cristãos, atuou como operador-chave na articulação entre a Santa Sé
e o Comitê Judaico Americano. As negociações nos bastidores, muitas vezes
ignoradas pelos relatos oficiais, revelam um processo intenso de pressão e
concessões para assegurar a aprovação da nova linha teológica.
Resistências não faltaram, desde o tradicionalismo rígido
representado pelo Cardeal Ottaviani, até os interesses geopolíticos dos
episcopados árabes que temiam o impacto do texto. Ainda assim, o texto final de
Nostra Ætate foi aprovado por esmagadora maioria.
Esse Concílio, longe de ser um evento pastoral isolado,
revela-se como a causa eficiente da transformação institucional e doutrinária,
atuando como superdogma — não só uma lei, mas a matriz que estrutura as novas
formas de ser Igreja no mundo pós-guerra.
Causa Final: O Catolicismo de Israel
A finalidade explícita e implícita do movimento conciliar é
a construção de um paradigma teológico que alguns chamam de “Catolicismo de
Israel”.
Inspirado nas ideias do rabino Elias Benamozegh, que em Israël
et l’humanité (1914) defendia a coexistência e complementaridade do
Judaísmo e do Cristianismo, esse paradigma propõe uma visão em que a Igreja
renuncia à exigência da conversão dos judeus e os reconhece como “caros a
Deus”.
Essa reconfiguração, no entanto, rompe com a tradição
católica de que a salvação é exclusivamente em Cristo e que a Igreja é a única
verdadeira Igreja, como ensina São Pedro (At 4,12). Ao abrir mão dessa posição,
o novo paradigma implica uma pluralização da salvação e um dualismo teológico
que desafia os fundamentos do magistério tradicional.
A consequência prática é uma redefinição das relações entre
a Igreja e o povo judeu que transcende o campo pastoral, influenciando política
e ideologicamente o papel da Igreja no cenário mundial.
Um Documento Esquecido: Humani Generis Unitas (1938)
O contraponto a essa transformação está na encíclica não
publicada Humani Generis Unitas, elaborada sob o pontificado de Pio XI.
Conforme atestado pelo Cardeal Tisserant, o texto estava
finalizado e na mesa do Papa quando ele faleceu em 1939. Esta encíclica
condenava firmemente o racismo e o antissemitismo nazista, reafirmava a
necessidade da conversão dos judeus e denunciava o anticristianismo presente em
certos setores do judaísmo.
A morte súbita de Pio XI impediu sua publicação, o que, na
conjuntura histórica, abriu espaço para a posterior redefinição da doutrina no
Vaticano II.
Estudos como os de Phayer (2000) e Passelecq & Suchecky
(1997) mostram que Humani Generis Unitas teria fechado o caminho para a
evolução que culminou em Nostra Ætate, impedindo a institucionalização
do “Catolicismo de Israel”.
Esse documento é fundamental para compreender o contraste
entre a tradição magisterial pré-conciliar e as novas orientações
pós-conciliares, oferecendo um farol para a restauração da doutrina autêntica.
Considerações Finais
O que hoje chamamos de crise eclesial não é um acidente ou
mera consequência do tempo. É o resultado de um processo deliberado,
multifacetado e bem articulado, cujas causas podem ser discernidas com clareza
à luz da análise aristotélica.
O Concílio Vaticano II, longe de ser apenas um momento de
atualização, funcionou como a causa eficiente para um projeto que tem raízes
profundas — a causa formal (Nostra Ætate), a causa material (a doutrina
do Holocausto) e a causa final (o Catolicismo de Israel).
Entender essa dinâmica é imprescindível para qualquer
esforço sério de restauração da Tradição católica, que requer não só
resistência, mas um conhecimento rigoroso dos fatos e dos fundamentos
teológicos e históricos.
Referências Bibliográficas
- Amerio, Romano. Iota Unum: A
Study of Changes in the Catholic Church in the 20th Century. Sarto
House, 1996.
- Benamozegh,
Elias. Israël et l’humanité. Paris: Alcan, 1914.
- Connelly, John. From Enemy
to Brother: The Revolution in Catholic Teaching on the Jews, 1933–1965.
Harvard University Press, 2012.
- Heschel, Susannah. The
Vatican and the Jews: The Struggle for the Meaning of Nostra Aetate. 2016.
- Isaac,
Jules. Genèse de l’antisémitisme chrétien. Paris: Calmann-Lévy,
1948.
- Lefebvre,
Marcel. Eles o Destronaram: Do Liberalismo à Apostasia.
Permanência, 1987.
- Passelecq, Georges; Suchecky,
Bernard. The Hidden Encyclical of Pius XI. Harcourt, 1997.
- Phayer, Michael. The
Catholic Church and the Holocaust, 1930-1965. Indiana
University Press, 2000.
- Vaticano
II. Declaração Nostra Ætate, 1965.