Entre Incensários e Tapetes Vermelhos
— ou como a barca de Pedro virou cruzeiro inter-religioso
com motor enguiçado
Acordei outro dia com as badaladas da Catedral de Santo
Antônio do Vale da Piedade da Campanha. Aquelas badaladas que parecem ter saído
direto de uma memória de infância, misturadas com cheiro de vela e o eco de um
latim que hoje já nem ecoa mais (lembro que não sou idoso). O padre continua o
mesmo — aquele que fala com a mão no peito como quem segura o coração pra não
deixar escapar. Missa das sete. Missal antigo? Nem pensar. Desde o Traditionis
Custodes, virou quase peça de museu. Quase.
É curioso. A Missa Tridentina, aquela em que o padre “celebra
de costas” — não por desdém, mas porque está voltado pra Deus —, virou uma
espécie de vinil litúrgico: há quem a colecione, há quem a idolatre, há quem a
veja como poeira do passado. Mas ninguém com um pingo de sensibilidade consegue
negar: aquilo tem beleza. Mesmo sem entender latim, o silêncio fala. E o
sagrado, ali, se impõe como um mistério inalcançável — e é justamente isso que
falta hoje.
Mas aí veio ele, o Papa Francisco — que Deus o tenha — e
disse: chega de saudade. Unidade primeiro, Tradição depois. A Igreja é Mãe,
sim, mas às vezes parece madrasta das saudades. Houve quem chorou mais com essa
restrição do que com excomunhão. Sintoma de quê? De que estamos mal? Ou de que,
talvez, o povo sente quando lhe arrancam o tapete de oração sob os pés?
Enquanto isso, do outro lado do mapa e da mentalidade,
Francisco apertava a mão do Grande Imame nos Emirados. Um gesto elegante. Uma
fotografia potente. E uma frase que caiu como raio no altar:
“O pluralismo e a diversidade de religiões são uma vontade divina.”
— Oi?
— Essa
doeu.
Pra quem aprendeu no Catecismo que só há uma fé verdadeira,
uma barca de salvação, uma chave nas mãos de Pedro — e não de Al-Tayyeb —,
aquilo soou como um novo Concílio... só que por nota diplomática. Teólogos
engasgaram, blogueiros católicos surtaram, e nos seminários mais tradicionalistas,
o pão com margarina e a Suma Teológica aberta na mesa virou debate
escatológico. “Como assim vontade divina?!”, gritou um seminarista já quase
ordenando sua heresia particular.
É uma dança arriscada essa que a Igreja ensaia: com um pé
fincado na Tradição bimilenar, e outro tentando sapatear ao som de um mundo que
toca reggaeton espiritual. Quer ser fiel às raízes, mas também parecer
moderna. Quer incenso e casula dourada, mas também Coldplay nos vídeos
oficiais. Quer latim no altar e inglês diplomático nos documentos. Uma
ginástica que mais parece contorcionismo.
E o povo? Ah, o povo. O povo assiste. Uns aplaudem, outros
reviram os olhos, mas todos, no fundo, estão tentando entender que tipo de
Igreja é essa. Um dia fecha a torneira da liturgia antiga porque “divide
demais”, e no outro abre o véu do santuário para o ecumenismo dos tapetes
vermelhos. Um dia se exige silêncio reverente ao Santíssimo, no outro se bate
palmas pra uma declaração que, se assinada por qualquer outro, seria tachada de
relativista.
Francisco — que Deus tenha em glória — quis a paz, quis o
diálogo, quis parecer menos papa medieval e mais CEO da esperança mundial. Mas
às vezes, na ânsia de agradar, acabou vestindo a noiva de Cristo como assessora
de ONG. E mal vestida, diga-se.
No fim das contas, a crise não é só de rito. Nem de
documento. É de identidade. A Missa de Sempre e a Declaração de Abu Dhabi são
placas tectônicas do mesmo terremoto: quem a Igreja acha que é, afinal? Guardiã
do sagrado ou gerente de espiritualidades?
Barca de salvação ou cafeteria universalista?
E enquanto bispos discutem se usam mitra ou boné, e padres
se dividem entre batina ou camiseta polo, o povo segue ali: rezando, meio
perdido, meio desconfiado, mas ainda com fé. Uma fé que sobrevive a tudo — até
aos próprios pastores.
Porque no fim, a Igreja continua sendo de Cristo.
E Ele, ao contrário dos teólogos modernos, ainda sabe
exatamente o que está fazendo.
Por seu Irmão Carmelita Secular da Antiga Observância B.
Nota aos engraçadinhos, apressados e comentaristas de
rede social:
Se você leu esta crônica achando que ela é só uma cutucada
no Papa, uma defesa velada de “tradizento”, ou um manifesto “cripto-lefebvrista”,
respire fundo. Pegue um café. Leia de novo!
Esta crônica é, antes de tudo, um retrato. Um espelho —
talvez meio embaçado, talvez rachado — da perplexidade que muitos católicos
sentem hoje diante de certos gestos, documentos e silêncios da Igreja. Não é
panfleto. Não é o X, (o antigo Tweet). Não é hino de guerra.
O tom é poético, o estilo é irônico, e a crítica é reverente
— porque amar a Igreja também é ter coragem de dizer quando algo parece fora do
compasso. O texto não nega o Magistério, não zomba da Autoridade Papal, e não
convida ninguém ao Cisma. Apenas questiona, como quem ainda acredita que fé e
razão podem caminhar juntas sem tropeçar na primeira dúvida.
Se te incomodou, ótimo. Pode ser sinal de que ainda há zelo
aí dentro. Mas antes de levantar a placa do “isso é desrespeito” ou “isso é
saudosismo tóxico”, pergunte-se: será que a crítica não é justamente um grito
de amor por uma Esposa que parece, às vezes, se esquecer de quem a desposou?
Crônica não é dogma. É alma em palavras. E aqui, com um pouco de incenso e um tiquinho de sarcasmo, o que se buscou foi lembrar: a Igreja é de Cristo. E isso, apesar de tudo, ainda consola.