A Sala do Pranto: O Gólgota do Eleito

Há um espaço escondido no coração do Vaticano onde o tempo parece suspenso. Um pequeno cômodo, simples, quase austero, mas saturado de uma carga espiritual inenarrável: a chamada Sala do Pranto ou Sala das Lágrimas. Seu nome não é oficial, mas tornou-se parte da tradição oral e simbólica da Igreja. Ali, o Papa recém-eleito entra sozinho, encerrando simbolicamente a vida que teve até então, para revestir-se do peso de Pedro.
I. Uma Liturgia do Silêncio
Na sacristia da Capela Sistina, após o cardinalato
pronunciar o decisivo “Accepto”, o eleito é conduzido à Camera
lacrimatoria. O nome, ao mesmo tempo poético e brutal, é um eco dos salmos
penitenciais: “Minhas lágrimas se tornaram meu pão dia e noite” (Sl 42,4).
Ali, lágrimas e vestes se misturam. As três túnicas brancas — pequena, média e
grande — esperam como símbolos da encarnação pastoral da Igreja, que acolhe não
um modelo de força, mas um servus servorum Dei, frágil e humano.
Esse momento é litúrgico no mais profundo sentido: uma
liturgia da alma diante de Deus. Sem incenso, sem canto gregoriano, mas com o
ardor do Espírito que rasga o peito com a consciência do peso de carregar a
Barca de Pedro em meio a tempestades seculares.
II. O Pranto dos Eleitos
As lágrimas nessa sala não são de vaidade ou fraqueza, mas
de uma compunção rara, daquelas que os Padres do Deserto chamavam de penthos,
a tristeza segundo Deus, que não paralisa, mas transforma.
As fontes históricas são discretas, mas não silenciosas. De
Pio X a João Paulo I, muitos confessaram o tremor que os tomou naquele
instante. Bento XVI, em entrevista, revelou que sua primeira reação foi pedir a
Deus que “não fizesse isso com ele”. Francisco relataria depois que, ao ver a
cruz peitoral de seu predecessor sendo retirada, sentiu a vertigem do juízo. O
pranto, então, é como um batismo. Um novo nascimento para morrer para si mesmo
— e viver para a Igreja.
III. Uma Teofania Disfarçada
O simbolismo da Sala do Pranto carrega ecos da caverna de
Elias (1Rs 19,9-13). Não há terremoto nem fogo, mas o murmúrio sutil de uma
Presença. Assim como Elias escondeu o rosto com o manto, também o Papa eleito
se reveste — não apenas com tecido, mas com o manto invisível da Cruz. A Sala
do Pranto é um Tabor às avessas, um Getsêmani em miniatura.
Teologicamente, poderíamos dizer que ali se atualiza o
paradoxo paulino: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10).
Ao despir-se da própria identidade para assumir a missão universal, o Papa
personifica o kenosis de Cristo (cf. Fl 2,6-11).
É ali que o eleito descobre o que é, de fato, ser Papa: não
um rei, mas um cordeiro no altar da história.
IV. Uma Sala que é Igreja
A Sala do Pranto também simboliza a condição espiritual de
toda a Igreja. Ela é o espaço da alma que, chamada ao seguimento radical,
precisa atravessar o deserto do eu para tornar-se lugar de Cristo. O pranto ali
é o mesmo pranto do fiel diante do confessionário, do sacerdote ao pé do altar,
do monge em sua cela. É o pranto da humanidade que reconhece, na impotência, a
via da graça.
É por isso que essa sala, tão pequena e escondida, se torna,
naquele instante, o centro místico do mundo. É o coração pulsante de um novo
ciclo, onde a carne se curva diante da missão.
Conclusão: A Sala que Não Podemos Evitar
A Sala do Pranto ou Sala das Lágrimas não é
apenas um local físico dentro dos bastidores vaticanos. É uma metáfora
existencial. Todo cristão, em algum momento, será levado à sua própria camera
lacrimatoria, esse instante solitário diante do chamado de Deus que exige
tudo. Ali não há plateia, não há discurso, não há escapatória. Há apenas Deus e
a alma nua.
Para o Papa eleito, esse espaço é o limiar entre o humano e
o mistério. Ele entra como cardeal, sai como Pedro. Como o pescador da
Galileia, não por mérito ou capacidade, mas porque Cristo, em sua soberana
liberdade, o olhou e disse: “Tu és Pedro”. E isso basta.
O pranto que se verte ali não é fraqueza — é consciência. É
o eco das lágrimas de Cristo sobre Jerusalém, das lágrimas de Pedro ao cantar
do galo, das lágrimas da Igreja que geme, ora e espera.
Talvez o maior sinal da presença do Espírito naquele momento
seja justamente o choro: um sinal de que o eleito ainda tem coração. E enquanto
houver lágrimas ali, haverá esperança para a Igreja. Pois um Papa que chora é
um homem que sabe que não é deus — mas que servirá até o fim aquele que é.
Referências Bibliográficas
- Ratzinger, Joseph (Bento XVI). Chamados à Comunhão. Ed. Loyola, 2001.
- Congregação para a Doutrina da Fé. O Primado do Sucessor de Pedro no Mistério da Igreja. Vaticano, 1998.
- Weigel, George. Testemunha da Esperança: A Biografia de João Paulo II. Ed. Objetiva, 2001.
- Tornielli, Andrea. Francisco: Vida e Revolução. Ed. Planeta, 2014.
- Daniélou, Jean. O Mistério da Igreja. Ed. Paulus, 2003.
- Chautard, Jean-Baptiste. A Alma de Todo Apostolado. Ed. Cultor de Livros, 2017.