Ainda sobre a Solenidade de ontem, celebrada...
Se Maria tivesse uma única
mancha, ela não poderia ser a nossa mãe. Por quê? Por não ser digna de nós?
Claramente, não é isso. Paradoxalmente, qualquer mancha tornaria Maria pura
demais para nós. Uma mancha seria um limite em sua infinita e compassiva
compreensão. Haveria coisas que nós gostaríamos de lhe dizer com toda
simplicidade, com a esperança de sermos aceitos, mas, exatamente por causa da
mancha, perceberíamos nela um leve tremor de repugnância, um movimento de
afastamento, um mínimo sinal de rejeição, por mais bem-educado que fosse. Onde
Maria tivesse uma mancha, ela seria uma “madame”. Os segredos que gostaríamos
de lhe contar seriam de mau gosto. Sentiríamos que estaríamos ofendendo seus
ouvidos virginais, e não saberíamos para onde nos voltar. A quem poderíamos
confessar-nos, se nem mesmo a Maria, se não à mãe de Jesus? Teríamos que
guardar os segredos pesados de nosso coração para nós mesmos.
Se Maria tivesse uma única
mancha, ela não poderia ser a nossa irmã, a nossa codiscípula. A mais leve
imperfeição nela a faria ver toda a nossa incoerência, toda a nossa covardia,
toda a nossa avareza. Houvesse nela uma mancha do tamanho de uma sarda, e ela
sempre nos contemplaria através desta sarda. Ela ficaria aborrecida com a nossa
lentidão em compreender as palavras de Jesus, a nossa ambição para ter o
primeiro lugar, para ficar sentados à direta e à esquerda de Jesus, o terror
que se apodera de nós só de ouvir a palavra “cruz”. Não teria paciência para nos
esperar cada vez que houvesse um deslize, uma queda, uma dúvida de nossa parte.
Estaria com pressa demais para nos aguardar em nosso seguimento de Jesus, nós
que tomamos um passo para frente e dois para trás. Depois de pouco tempo, ela
nos deixaria na poeira, como se diz em inglês, ela, a campeã, ela, a primeira a
chegar ao topo do monte da perfeição, sem suar, sem perder o fôlego. Os nossos
passos de tartaruga só poderiam irritá-la.
Se Maria tivesse uma única
mancha, ela não poderia ser a nossa intercessora. A sua pequena falha a
tornaria justa demais. Cada vez que pedíssemos a ela para falar a Deus em nosso
nome e trazer-nos de volta o divino perdão, ela teria que recusar. Quem sabe se
uma ou outra vez no início aceitaria aproximar-se do Rei para implorar a sua
clemência? Mas logo ela perceberia que a gente continuava a cometer os mesmos
pecados de sempre. De novo? Mais uma vez? Vocês não sabem que de Deus não se
zomba? Como um sacerdote no confessionário que recusa a absolvição ao penitente
que vem semana após semana com a mesma história lastimável de pecados sempre
repetidos, Maria sentiria com toda razão que não adiantaria rezar por nós
diante do trono de Deus. Como intercessora ela teria que assumir
responsabilidade por nossa progressiva conversão. E como fazer isto quando
falta qualquer indício de conversão, mas só recaída em cima de recaída e
infidelidade em cima de infidelidade? “Eia, pois, advogada nossa”… Não venham
mais com isto, ela diria. Advogada tem que acreditar pelo menos um pouco na
inocência de seus clientes, e não posso acreditar na sua.
Se Maria tivesse uma única
mancha, ela não poderia agir juntamente com Jesus como corredentora. São Paulo
afirma que Jesus, que não conhecia pecado, se fez pecado a fim de que
pudéssemos nos tornar justiça de Deus (Cf. II Cor 5,20). Se Maria conhecesse o
pecado, mesmo por meio de um conhecimento muito tênue, ela não poderia fazer-se
pecado em nosso favor juntamente com Jesus. Somente um imaculado poderia
fazer-se pecado. Somente um radicalmente inocente pode tirar os pecados do
mundo. Sim, ela ficaria ainda ao pé da cruz, olhando para Jesus, mas não
participaria de nossa salvação. O mini pecado dela a impediria de assumir o
nosso pecado. Ela não teria forças para tanto. Ela desmaiaria.
Mas tudo isto é apenas
imaginação. De fato, Maria é imaculada e, portanto, nos escuta como mãe, nos
acompanha como irmã, nos defende como advogada, nos redime como vítima ao lado
de Jesus. Nós temos a ideia louca de que é o pecador que mais entende, aceita e
se identifica com outros pecadores. A semelhança produz a intimidade, nós
achamos; a proximidade de destinos cria a comunhão. Mas é o contrário que é
verdade. É o inocente que compreende o pecador, sente compaixão dele, está
disposto até a dar a sua vida por ele. De um outro pecador só vem menosprezo,
zombaria, palavrão. Quanto mais santa a pessoa, mais unida aos pecadores, mais
identificada com eles. Esta é a grande lição do Idiota de Dostoiévski. E quando
a pessoa é totalmente santa, como era Jesus, como era Maria, a distância some
completamente. Eu e o Pai somos um. Eu e os pecadores somos um. Assim fala
Jesus. Eu e Jesus somos um. Eu e os pecadores somos um. Assim fala Maria. A
tota pulchra é a toda próxima. Maria é a panaghia – a toda santa – e por isso
ela é a pan-humana. É a sua imaculada conceição que a torna totalmente nossa.
Sempre. Em qualquer momento. Agora.
Por um Monge
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