A multidão comprime-se em volta da guilhotina. Entre os
condenados, se vêem diversas mulheres de capa branca: são as dezesseis
carmelitas do convento de Compiègne...
Praça do Trono, 17 de julho de 1794. — São cerca de
oito horas da tarde. É verão e o céu ainda está claro. A multidão comprime-se
em volta da guilhotina, erguida no centro da antiga Place du Thrône, atual
Barriére de Vincennes. Junto dos degraus que conduzem ao cadafalso, o carrasco,
Charles-Henri Sanson, espera respeitosamente de pé, flanqueado por dois
ajudantes. O calor é opressivo, e em toda a praça reina um odor mefítico de
sangue.
Vindos da cidade, despontam os carroções. Hoje são dois, e
vêm bastante cheios: ao todo, serão quarenta vítimas. Recebem-nas as
exclamações e ameaças habituais, mas o barulho logo se abafa em murmúrios de
espanto. Acontece que, entre os condenados, se vêem diversas mulheres
de capa branca: são as dezesseis carmelitas do convento de Compiègne. Ao
contrário dos seus companheiros de infortúnio, não deixam pender a cabeça nem
choram ou gritam; trazem o rosto erguido, e a linha firme do corpo é sublinhada
pelas mãos amarradas às costas. E cantam: aos ouvidos de todos, ressoam as
notas quase esquecidas da Salve Rainha em latim e do Te
Deum. Até para o mais empedernido dos basbaques presentes, é um
espetáculo inaudito.
Até para o mais empedernido dos basbaques presentes, é um
espetáculo inaudito.
Quando os carroções param ao pé do cadafalso, o burburinho
faz-se silêncio absoluto. Até essas mulheres histéricas, as chamadas “fúrias da
guilhotina”, que sempre estão na primeira fila dos espectadores, emudecem.
As primeiras a descer são as carmelitas. Uma delas, a
priora, Madre Teresa de Santo Agostinho, aproxima-se do carrasco e pede-lhe que
lhes conceda uns minutos para poderem renovar os seus votos e que a deixe ser a
última a sofrer a execução, para que possa animar cada uma das suas filhas até
o fim. Sanson, o carrasco, alma delicada, concorda de bom grado.
Todas juntas, cantam o Veni Creator Spiritus. A
seguir, renovam os seus votos religiosos. Enquanto rezam, uma voz de mulher
sussurra na multidão: “Essas boas almas, vejam se não parecem anjos! Pela
minha fé, se essas mulheres não forem diretas ao paraíso, é porque o paraíso
não existe!…”
A priora recua até a base da escada. Tem nas mãos uma
estatueta de cerâmica da Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo. A primeira a
ser chamada, a mais jovem de todas, é a noviça Constança. Ajoelha-se diante da
Madre e pede-lhe a bênção. Segundo uma testemunha, ter-se-ia também acusado
nesse momento de não haver terminado o ofício do dia. Com um sorriso, a Madre
diz-lhe: “Vai, minha filha, confiança! Acabarás de rezá-lo no Céu”…, e
dá-lhe a beijar a imagem.
Constança sobe rapidamente os degraus, entoando o
salmo Laudate Dominum omnes gentes, “Louvai o Senhor, todos os
povos”. “Ia alegre, como se se dirigisse para uma festa”. O carrasco e seus
ajudantes, com gesto profissional, dispõem-na debaixo da guilhotina. Ouve-se o
golpe surdo do contrapeso, o ruído seco da lâmina que cai, o baque da cabeça
recolhida num saco de couro. Sem solução de continuidade, o corpo é lançado ao
carroção funerário.
Uma por uma, as freiras ajoelham-se diante da priora e
pedem-lhe a bênção e permissão para morrer. Cantam o hino iniciado por
Constança. Quando chega a vez da Irmã de Jesus Crucificado, que tem 78 anos, os
jovens ajudantes do carrasco têm de descer para ajudá-la a vencer os degraus.
Ela diz-lhes afavelmente: “Meus amigos, eu vos perdôo de todo o coração,
tal como desejo que Deus me perdoe”.
Uma por uma, as freiras ajoelham-se diante da priora e
pedem-lhe a bênção e permissão para morrer.
Só falta a Madre. Com gesto simples e firme, beija a
estatuinha e confia-a à primeira pessoa que tem ao lado. (Essa imagem foi
devolvida mais tarde à Ordem e encontra-se hoje no Carmelo de Compiègne,
novamente fundado em 1867.) Tem 41 anos, um rosto expressivo, nem muito bonito
nem feio; o porte é, mais do que altivo, descontraído. Os olhos castanhos,
sofridos, mas irradiando bondade, procuram os do Pe. Lamarche, que as
confessara no dia anterior na prisão e que se encontra entre a multidão. Como
quem tem pressa em concluir uma tarefa urgente, sobe por sua vez os degraus.
Agora tudo terminou. Pode-se cortar o silêncio como se fosse
um queijo. Muitos dos assistentes choram baixinho. Anos mais tarde,
encontrar-se-ão — registrados em cartas pessoais, diários íntimos e memoriais —
os ecos da emoção que experimentaram e dos efeitos que ela lhes causou: muitos
sentiram a necessidade de mudar de vida, de retomar a prática dos sacramentos,
um ou outro de ingressar num convento… Um deles, um menino que presenciara
a cena das janelas de um prédio situado em frente da guilhotina, guardou dela
uma impressão tão profunda que, anos mais tarde, quando fazia o serviço
militar, carregava sempre consigo as obras de Santa Teresa de Ávila e acabou
por fazer-se sacerdote. “O amor vence sempre”, costumava dizer a Madre
priora; “o amor vence tudo”.
Os corpos foram levados às pressas para o antigo convento
dos agostinianos do Faubourg de Picpus. Lá foram lançados na fossa comum e
cobertos de cal viva. Hoje há ali um gramado cercado de ciprestes, com uma
simples cruz de ferro. É um lugar de silêncio e oração.
Na capelinha anexa a esse cemitério, há uma lápide que traz
o nome das dezesseis mártires beatificadas em 27 de maio de 1906 por São Pio X.
Referências
- In: Gertrud von le Fort. A última ao cadafalso: medo e esperança, trad. port. de Roberto Furquim. São Paulo: Quadrante, 1998, pp. 120-123.
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