S. João da Cruz, presbítero e doutor da Igreja
Santa Teresa de Jesus o considerava “uma das almas mais
puras e santas que Deus suscitou na sua Igreja”. Esse “meio frade” de
compleição franzina foi grande na fé, baluarte do Carmelo Descalço e da
Contrarreforma.

Com efeito, muitas questões podem ser resolvidas
por esses meios. Mas bem diversa é a perspectiva da Fé, a qual ensina que a
História está sob o olhar providente de Deus, e este a governa de acordo com
desígnios eternos. Tudo está subordinado aos seus planos, sobretudo o que se
relaciona com a salvação das almas.
Na
vanguarda da Contrarreforma
A Santa Igreja Católica, ao longo dos seus dois mil
anos de existência, comprovou por diversas vezes esta maravilha: homens de
oração, levando uma vida de recolhimento, foram chamados a mudar o rumo
dos acontecimentos. A exemplo de Nossa Senhora, cujos desejos trouxeram a
Redenção para o gênero humano, os justos movem o coração de Deus. A santidade
pode ser considerada, sem risco de incorrermos num exagero, a verdadeira
força decisiva dos fatos.
Como recorda um teólogo, “há almas heroicas que
nada recusam ao Amor. Deus as eleva infinitamente acima de si mesmas, as
diviniza, as configura à imagem de seu Filho único. […] Seus mais
insignificantes atos cotidianos, assim como os da Mãe de Deus, adquirem um
valor quase infinito. A Igreja inteira se beneficia deles e sua vida
corredentora resplandece sobre as de todos os homens, dando frutos de
salvação”.
Quem analisa os fatos com base em critérios
terrenos pode ser surpreendido em seu juízo, pois “a História do universo se
reduz, em suma, aos avanços e recuos destas missões divinas [nas almas]. Todo o
resto é secundário e perecerá”.
Quando a pseudorreforma luterana se levantou contra
as Leis de Deus e da Igreja, ergueu-se nas fileiras da Esposa Mística de Cristo
um brado de fidelidade partido de seus melhores filhos. Entre estes, coube um
papel de grande relevo a dois contemplativos espanhóis, cujos nomes ainda hoje
são evocados pelos fiéis com especial veneração: Santa Teresa de Ávila e São
João da Cruz.
Amparado
e escolhido por Nossa Senhora
João de Yepes nasceu em 1542, no pequeno vilarejo
de Fontiveros, incrustado nas amplas planícies de Castela. Seu pai, Gonzalo de
Yepes, era um membro da nobreza toledana que renunciou às prerrogativas de sua
origem para contrair matrimônio com Catarina Álvarez, uma humilde tecelã. Desta
união nasceram três filhos, sendo João o último deles.
A cruz – que um dia esse menino escolherá com
encanto para figurar em seu próprio nome – haveria de estar presente junto a
ele desde seus primeiros anos. Os sucessivos fracassos nos negócios paternos
levou o lar a uma situação de extrema pobreza, sanada apenas em parte pelos
trabalhos de tecelagem do casal.
Entretanto, o maior infortúnio verificou-se quando
o Santo contava dois anos de idade, com o falecimento do pai, que foi acometido
por uma dolorosa moléstia. A viúva, sem outro recurso que a proteção da
Providência, lançou-se numa luta sobre-humana pelo sustento da família.
Indagada pelos inocentes olhares dos filhos acerca do futuro, partiu para
outros povoados e, finalmente, para Medina del Campo, na tentativa de ser
melhor remunerada por seus serviços. Destes anos marcados por provações restou
uma preciosa recordação: o grande desvelo de Maria Santíssima por aqueles
desamparados.
Certo dia, brincando com os amiguinhos em volta de
um lago lamacento, João perdeu o equilíbrio e caiu, afundando na água lodosa.
Ele logo voltou à tona, mas em seguida submergiu novamente e, enquanto se
debatia sem conseguir se soerguer, notou que uma Dama de celestial beleza lhe
sorria e oferecia o braço para resgatá-lo. Vendo-se, porém, tão sujo, não quis
macular a alvura daquela Senhora e se recusou a apoiar-se n’Ela. Afinal, um
lavrador da região estendeu um galho, ao qual ele se agarrou e pôde ser
puxado para a margem.
Esse episódio inaugurou entre a Virgem e o menino
um vínculo entranhado, que se prolongou por toda a vida e o levaria, anos
mais tarde, a ingressar numa Ordem mariana, como penhor de gratidão.
Despontar
da vocação
Numa instituição de caridade de Medina del Campo
João aprendeu os rudimentos da doutrina católica, a acolitar a Missa e a cuidar
da sacristia, entre outros ofícios. Sua maior felicidade era exercer essas
funções, pois junto ao altar expandia a alma em colóquios com o Divino
Crucificado, em cuja companhia esquecia todas as privações.
Os benfeitores, dando-se conta da pureza ilibada
daquela alma e, ao mesmo tempo, da sua aptidão para os estudos,
favoreceram a entrada do jovem no colégio dos jesuítas. Ali permaneceu por
vários anos aplicado em árduas matérias, enquanto meditava com seriedade acerca
de sua vocação. Quando esta se tornou clara, não hesitou: bateu às portas do
Convento do Carmo pedindo o hábito de Nossa Senhora.
Uma página de sua célebre Noite Escura nos permite
vislumbrar os propósitos com os quais ingressou na vida religiosa: “Ah,
Deus e Senhor meu! Quão numerosos são os que em Vós procuram consolo e
satisfação, vos pedem mercês e dons! Muito poucos, porém, são os que
pretendem agradar-Vos e dar-Vos algo à sua própria custa, postergando seu
interesse particular. Pois, ó meu Deus, não está a falta em não quererdes Vós
fazer-nos novas mercês, mas em não empregarmos nós só em vosso serviço as
já recebidas, a fim de obrigar-Vos a nos favorecer sempre”.
Um
encontro providencial
No Carmelo de Medina del Campo recebeu a tonsura,
abraçando a regra da Ordem com o nome de Frei João de São Matias. Costumava
passar longas horas diante do sacrário e ajudava a Missa com prazer e
alegria, até ser encaminhado pelos superiores para o noviciado de Salamanca.
A legendária universidade desta cidade vivia dias
de glória, com mestres de grande erudição e cerca de sete mil alunos. Nos
bancos estudantis o futuro Doutor da Igreja aprendia com esses sábios, mas lhes
sobressaía em virtude, penitência e recolhimento. Nesse ambiente de
efervescente interesse filosófico e teológico ele conheceu a doutrina de São
Tomás de Aquino, que mais tarde colocaria a serviço da formação dos
carmelitas descalços e utilizaria em seus escritos, conferindo-lhes especial
solidez.
Na velha catedral da cidade, Frei João de São
Matias recebeu a unção sacerdotal aos 25 anos, com disposições verdadeiramente
angélicas. Contudo, seus anseios de contemplação clamavam por um convívio
com Deus muito mais próximo. Ao regressar a Medina del Campo cogitava em trocar
o Carmelo pela Cartuxa, onde, supunha ele, a oblação de si mesmo seria maior.
Nessas circunstâncias encontrou-se pela primeira
com Santa Teresa de Ávila. A grande reformadora viera a Medina em 1567
fundar um convento de descalças e percebeu ser a ocasião de estender a reforma
ao ramo masculino, uma vez que já havia sido autorizada pelo geral da Ordem a
dar esse passo.
Numa entrevista decisiva com Frei João, na qual
também esteve presente Frei Antônio de Heredia, Madre Teresa o convidou a
tomar parte na santa aventura, pois seu discernimento indicava ser ele “uma das
almas mais puras e santas que Deus suscitou na sua Igreja”. Enquanto a
fundadora se dispunha a conseguir uma casa para os primeiros descalços, Frei
João, flexível ao sopro do Espírito Santo, prometeu considerar a proposta, mas
pediu-lhe, com a expressão característica dos Santos, que não demorasse muito…
Curiosamente, Frei Antônio era um homem de estatura
imponente e contrastava com Frei João, de compleição franzina. O encontro
deixou a madre entusiasmada, como manifestou às suas freiras: “Ajudem-me,
filhas, a dar graças a Deus Nosso Senhor, pois já temos frade e meio para
começar a reforma dos religiosos”.

O
ideal do Carmelo reformado
A partir de então Teresa de Jesus contou com a
inestimável colaboração de Frei João e “sob a ação conjunta dessas duas almas
de fogo, o movimento da reforma difunde-se como uma mancha de óleo”. Nos
conventos onde atuam são banidas as concessões ao espírito do mundo, a
mitigação no cumprimento da regra e a clausura passa a ser vivida em todo o seu
rigor. Vive-se com a intenção de reparar as infidelidades cometidas contra
a Igreja na época, e este heroico propósito aglutina pujantes vocações: “A
autoridade e o fervor dos descalços atraíam-lhes muitos homens de primeira
plana; a austera grandeza da nova observância impressionava”.
Frei João da Cruz – como passou a se chamar – foi
protagonista das empolgantes páginas dos anos de fundação registradas nos anais
do Carmelo Descalço, movendo-se entre mil fioretti miraculosos. Certa vez,
conversando com Santa Teresa, foram ambos agraciados com o duplo dom do êxtase
e da levitação, e uma das irmãs só conseguiu encontrá-los depois de passar
várias vezes pelo locutório, ao olhar para cima.
Contudo, Frei João não deixou de sofrer também a
fúria dos infernos. Durante nove meses permaneceu encarcerado pelos calçados, e
no final da vida foi destituído de todos os cargos e abandonado num convento
onde o superior o maltratou com extrema dureza. Alguém menos experimentado no
amor a Deus teria sucumbido ao peso de tais sofrimentos físicos e morais, mas
ele tudo suportou com cordura, chegando a compor na prisão alguns dos poemas
que mais tarde deram origem à sua obra literária.
Eminente
diretor espiritual
Quem percorre as passagens da vida do Doutor
Místico percebe que ele exerceu as mais variadas funções: foi mestre de
noviços, prior, reitor universitário e membro do Capítulo com cargos diretivos.
Mostrou-se sempre dócil instrumento nas mãos dos superiores, servindo em todos
os fronts e lugares.
Mas a sua sabedoria parece ter se revelado
sobretudo na direção das almas. Por obra da graça, São João da Cruz foi
conduzido aos cumes da via unitiva, sendo chamado a instruir seus filhos nos
segredos da amizade com Deus. Aos penitentes, tanto religiosos como seculares,
dedicava todo o tempo necessário; sua presença era discreta, de grande modéstia
e mansidão, porém as penetrantes análises chegavam ao fundo das consciências,
como se estas fossem um espelho límpido. Ouvindo as acusações ele logo divisava
o foco dos males das almas e tinha para cada uma a palavra justa, inspirada
pelo Espírito Santo. Todos os seus penitentes saíam do confessionário com ânimo
redobrado para enfrentar a luta contra o pecado e progredir a passos
largos nas vias da salvação, pois para São João da Cruz, no caminho da
perfeição, “o não avançar é recuar; e o não ganhar é perder”.
Um de seus conselhos mais veementes, repetido ao
longo dos anos a todos quantos se colocavam sob sua orientação, era dar
primazia à vida interior: “Advirtam aqui, pois, os que são muito ativos e
pensam abraçar o mundo com suas prédicas e obras exteriores: muito maior
proveito propiciariam à Igreja, e muito mais agradariam a Deus, além do bom
exemplo que dariam, se gastassem ao menos a metade desse tempo com Deus,
na oração […]. Decerto fariam então com uma obra mais do que com mil, e com
menos trabalho, pelos méritos de sua oração e nela havendo obtido forças
espirituais; pois, de outra maneira, tudo é martelar e fazer quase nada, às
vezes nada, e até mesmo dano”.
Doutor
Místico
O principal legado do reformador à família
carmelitana e à Igreja é, sem dúvida, a sua vida mística. Deus, que não poupou
a este filho os mais atrozes sofrimentos, deu-lhe já nesta Terra grande
recompensa: conforme ia purificando sua alma, convidava o servo fiel a gozar de
sua intimidade, como costuma fazer aos melhores amigos.
Fruto da correspondência exímia de São João da Cruz
aos favores recebidos é sua trajetória espiritual bastante rica e fecunda,
que se revela uma escola segura onde são instruídas as almas, dentro e fora dos
conventos. A ascensão ao cimo do Monte Carmelo, imagem do estado de perfeição
atingido por meio de purificações e pela noite escura, tornou-se um dos
símbolos de santidade mais conhecidos da piedade católica.
Este tesouro está consignado na sua obra escrita,
sobretudo nos principais tratados e poemas: Subida ao Monte Carmelo, seguido
pela Noite Escura, Cântico Espiritual e Chama Viva de Amor. Os dois últimos,
difíceis de serem compreendidos por principiantes, são versos comparáveis a um
requintado licor, o qual exige do apreciador paladar apurado. É uma poesia
“angélica, celestial e divina, que já não parece deste mundo, nem pode ser
medida com critérios literários. […] Por ali passou o espírito de Deus,
embelezando e santificando tudo”.
Matinas
diante de Deus!
No ano de sua morte, São João da Cruz confidenciou
a seu irmão Francisco de Yepes que havia pedido a Nosso Senhor a graça de
sofrer mais por Ele e de ser desprezado. 11 Seu desejo foi atendido, pois a
partir de então os poucos meses de vida que ainda lhe restavam foram marcados
por terríveis provações. Um conselho lúcido dado pelo Santo no Capítulo da
Ordem, em junho de 1591, provocou a indignação de Frei Nicolau Dória, o
superior geral. Este o destituiu de todos os cargos e o mandou como simples
frade para um convento distante, como teria feito a um filho perverso.
Aos 49 anos, Frei João já não esperava mais nada
deste mundo; queria apenas ser consumido qual chama de amor viva. Uma
virulenta inflamação na perna direita assumiu proporções preocupantes em
setembro desse ano, e em pouco mais de três meses o tomou por inteiro. Em Úbeda,
na Andaluzia, ele edificou a comunidade com a aceitação de todas as dores e
recebeu a revelação do momento de sua morte: a meia-noite de 14 de dezembro.
Poucos minutos antes do instante indicado, exclamou ao frade enfermeiro:
“A essa hora, estarei diante de Deus Nosso Senhor a rezar as Matinas”! E na
virada do dia, expirou em inteira paz.
O insigne Doutor da Igreja deixou aberto atrás de
si um caminho privilegiado para se chegar ao Céu, seguido por legiões de almas
amantes do holocausto como meio de expiação pelas faltas da humanidade
pecadora. Seus anseios de restituição ao Criador haviam se cumprido, tal como
ele desejara ao ingressar na venerável Ordem do Monte Carmelo: “Esta é a grande
satisfação e contentamento da alma: ver que dá a Deus mais do que ela é e vale
em si mesma, com aquela mesma luz e calor divino que d’Ele recebe”.
(Revista Arautos do Evangelho, Dezembro/2014, n. 156, pp. 22 à 25)
Oração
Senhor, que inspirastes a São João da Cruz (nosso pai), a
perfeita abnegação de si mesmo e o ardente amor à cruz, concedei que, imitando
o seu exemplo, cheguemos à contemplação eterna da vossa glória. Por Nosso
Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito
Santo. Amém.
Festa celebrada na OCarm. dia 14 de dezembro.