Mesa, Morada e Mistério: os irmãos e o milagre da convivência
Depois de falarmos sobre o espaço da cela e do silêncio como territórios onde Deus e o homem se encontram, agora a Regra do Carmo nos leva
para outro espaço igualmente sagrado: a mesa. Porque, no Carmelo, até o comer
tem sabor de liturgia. O refeitório não é apenas o lugar de matar a fome — é
onde o pão repartido e a Palavra proclamada formam uma só refeição. Ali, o
corpo e a alma se alimentam juntos, lado a lado, sem ostentação, sem pressa,
com o Evangelho temperando o cotidiano.
E, logo em seguida, Santo Alberto dá outro recado direto:
não é cada um que escolhe seu canto, não é cada um que troca de lugar quando
quer. O espaço no Carmelo é dom, não capricho. A ordem dos lugares fala de uma
obediência concreta, da arte de permanecer onde Deus te planta, sem fugir, sem
inventar desculpa. Porque, no fundo, essa disciplina de “ficar no seu lugar” é
um treino para o coração, que aprende a não fugir de si mesmo — e muito menos
de Deus.
II. A infraestrutura da vida comunitária
Regra do Carmo, números 7 e 8
7. De tal modo, porém, que, num refeitório comum, tomem o alimento que lhes for doado, ouvindo juntos alguma leitura da Sagrada Escritura, onde isto puder ser feito sem dificuldade.
8. A nenhum irmão será permitido, a não ser com a licença do prior em exercício, mudar-se do lugar que lhe foi indicado ou trocá-lo com outro.
A comunhão não é um milagre, é um combate amoroso
Os números 7 e 8 da Regra do Carmo são um convite à encarnação
do mistério da comunhão. Aparentemente simples — tratar da refeição comum e
da convivência estável —, eles guardam em si uma carga espiritual imensa: são
a arte de viver o invisível no visível, de fazer da rotina um altar.
É importante lembrar: a Regra nasce não nos claustros bem
organizados da Europa, mas nas encostas acidentadas do Monte Carmelo, em um
contexto de instabilidade política e religiosa. Aqueles primeiros irmãos,
convertidos e sedentos de Deus, optaram por uma vida de solidão, sim — mas
uma solidão acompanhada. Não fundaram um mosteiro no sentido clássico, mas
uma “comunidade de eremitas” que viviam em celas separadas, voltadas
para um espaço comum, o oratório. A refeição em comum, ao menos uma vez por
dia, não era apenas para matar a fome do corpo — era um exercício espiritual
de quebra do isolamento, uma Eucaristia em miniatura. Cada pão
partilhado era uma forma de lembrar: “Somos de Deus, e só juntos O
alcançaremos”.
O número 8 reforça esse espírito com o princípio da estabilidade:
“cada um permaneça na cela ou próximo dela, meditando dia e noite na lei do
Senhor”. Mas como permanecer, num mundo que instiga movimento, mudança,
fuga? A permanência estável não é inércia. É resistência. É combate
silencioso contra a fuga de si mesmo, contra o impulso de abandonar o outro
quando ele se torna espelho das nossas feridas. Permanecer, aqui, é se con verter ao lugar e às pessoas com quem Deus quis que você
vivesse. Uma obediência radical ao real.
Teologicamente, a refeição comum é um sinal
escatológico. Quando os irmãos se reúnem à mesa, ali se realiza um ícone
do Reino: uma fraternidade reconciliada, que não precisa competir por
alimento, por atenção ou por espaço. É uma resposta sacramental à lógica do
mundo — onde se come com pressa, com culpa, com disputa. No Carmelo, comer
juntos é participar da mesa mística da Ceia, mas sem velas ou turíbulos.
É Eucaristia oculta — escondida no cotidiano.
A Regra carmelitana herda esse espírito: a refeição deve ser
momento de comunhão contemplativa, não de tagarelice. A mesa, quando
vivida com espírito de oração, torna-se sacrário onde se aprende a acolher a
humanidade do outro — com suas manias, seus ruídos e suas fragilidades.
Na vivência comunitária, esses dois números são como espelhos
espirituais. Eles nos perguntam: comemos juntos ou apenas nos
alimentamos ao mesmo tempo? Estamos sob o mesmo teto, ou apenas dividindo
paredes? Há entre nós uma comunhão espiritual real, ou uma mera coexistência
civilizada, mas fria?
Viver em comunidade, no espírito do Carmelo, é optar pelo
fogo lento da transformação mútua. Não é comunhão de anjos, mas de homens
em conversão. Por isso a mesa é o campo de batalha do ego e o canteiro de
flores da caridade. Ali, todos os dias, se aprende a servir o outro antes
de si, a esperar sem impaciência, a engolir o orgulho junto com o pão. É
também na mesa que se revela quem ainda acredita que pode ser santo sozinho
— ilusão antiga que a Regra desmonta com sabedoria quase maternal.
A permanência estável (n. 8) também nos recorda algo
contracultural: o caminho espiritual não está em mudar de lugar, mas em
mudar de olhar. A cela não é prisão, é espelho. E o irmão ao lado é dom, não
obstáculo. A tentação de abandonar a comunidade, de procurar “outro lugar
melhor”, é sempre uma fuga do trabalho interior. O Carmelo responde: “permanece”.
Permanece até que a cela floresça. Permanece até que o outro se torne tua
oração viva.
Na verdade, a comunhão fraterna proposta aqui não é
idealista, é realista e mística: exige conversão constante, humildade que se
dobra mil vezes por dia, capacidade de rir de si mesmo, e uma esperança
escandalosa de que Deus realmente age no ordinário.
Assim, entre colheradas e convivências, a Regra vai nos
moldando: um pouco monges, um pouco irmãos, um tanto santos e um tanto
teimosos. Mas é nesse barro humano que Deus escreve sua história. No próximo
número, da Regra, seremos convidados a olhar para a cela do Prior — não como um
símbolo de poder, mas como sinal de serviço. Porque no Carmelo, autoridade rima
com humildade, e liderar é, antes de tudo, escutar. E que venha o número 9,
porque a morada é santa, mas quem a guarda é quem a torna lar.
“A mesa e a cela”
Na sombra quente do
Carmelo,
um pão, um gesto e um
olhar.
O silêncio mastiga junto,
e o tempo aprende a
esperar.
Uns chegam cheios de
pressa,
outros, com o dia a
arrastar.
Mas à mesa ninguém é
sobra:
todos vieram para amar.
Depois do pão, vem o
retiro:
cada um volta ao seu
lugar.
Na cela, o verbo se faz
carne,
e o amor aprende a calar.
Ali, o mundo se aquieta,
a alma ousa repousar.
A cela é cova e promessa:
morrer pra Deus nos
habitar.
E quando a hora se cala,
resta o gosto do lugar:
o milagre mais escondido
é o dom de simplesmente
estar.
O texto acima reflete, a partir do livro: MESTERS, Frei Carlos. Ao Redor da Fonte: Um comentário da Regra do Carmo. Belo Horizonte: Província Carmelitana Santo Elias, 2013.